quinta-feira, 25 de junho de 2020

“Nepenthos”, novo livro de D. D. Maio - publicado!


“Nepenthos”, novo livro de D. D. Maio, já se encontra disponível em papel.

Link: www.bubok.pt/livros/12182/Nepenthos

A ilustração de capa e contracapa é da talentosa Ariadne Castro.
Os capítulos iniciais de "Nepenthos", e alguns excertos adicionais, podem ser lidos AQUI.

Sinopse
Num gesto de encoberta bondade, o jovem imperador salva uma rapariga da ignomínia na taberna da vila. Devia ter sido inconsequente, mas o encontro muda para sempre as suas vidas.


Acaso, escolha ou destino?

Reena deseja morrer. Serva órfã, presa de abuso em menina e forçada à prostituição desde jovem, há muito que o desespero lhe sussurra ao ouvido. A súbita oferta de uma vida melhor no castelo do imperador não é o trabalho digno que teria almejado, mas dá-lhe esperança de vir a conquistar uma humilde posição de criada. No castelo, Reena experimenta uma liberdade que nunca lhe tinha sido permitida e recorda sonhos de rapariguinha, de um amor e de uma família. Mas sucessivos envolvimentos românticos, fracassados, tornam a lançá-la na escuridão da derradeira escolha. Por muito que tudo ainda melhore, conseguirá alguma vez resgatar-se a si mesma desse inimigo oculto no âmago da sua alma?
Eric, o imperador, já desceu demasiado baixo. Enraivecido por uma infância de abandono, endurecido por um passado de guerra, envereda voluntariamente pelos nefastos caminhos de que talvez não haja regresso. Um último passo na direcção errada desmorona o homem de pedra que já não o quer continuar a ser. Mas não será demasiado tarde para mudar?
Tão afastados nos extremos do destino, Eric e Reena partilham difíceis veredas na busca da longínqua felicidade que não lhes parece reservada. Para ambos, nenhuma felicidade poderá ser vulgar.


“Nepenthos” é um drama em Low Fantasy, pesado e realista, por vezes desconfortável, mas com bastantes tons de romântico.


CAPA



CONTRACAPA


Nº de páginas: 740
Tamanho: 152x228 mm
ISBN: 978-84-685-4821-0
BUBOK
print on demand 



domingo, 21 de junho de 2020

Homeland / Segurança Nacional (2011-2020)


[crítica às oito temporadas; não revela o fim]

Não é todos os dias que acabo de ver uma série que segui durante oito temporadas e fico de boca aberta sem saber o que dizer. Talvez por isso seja a primeira vez que aqui falo de “Homeland”, algumas semanas depois de ver o final e de ficar novamente de boca aberta a processar o que tinha acabado de ver.
“Homeland”, série de espionagem baseada na luta contra o terrorismo e na (geo)política da actualidade, sempre teve essa capacidade de chocar. A qualquer momento podíamos ver qualquer coisa de verdadeiramente arrepiante que se podia passar connosco. A série lembra-nos constantemente de onde vem o “terror” na “palavra “terrorismo”. Mas a série tinha também uma capacidade impressionante de “prever o futuro”, a tal parte que me deixava de boca aberta, criando cenários que muitas vezes eu rejeitava como demasiado irrealistas ou mesmo catastrofistas, para alguns meses depois ficar outra vez de boca aberta quando os “cenários” se tornavam realidade nas notícias. Bem, não é que a série conseguisse “prever” o futuro. Os escritores é que têm um conhecimento profundo dos temas que estão a desenvolver, que lhes permite facilmente antever onde é que o presente vai dar no futuro. Tiro-lhes o chapéu. “Homeland” foi uma das séries mais bem feitas desta última década.
E uma série que teve o bom senso de não se arrastar demasiado, de não se prolongar artificialmente por causa das audiências, de acabar no momento certo, o que cada vez mais começa a ser digno de elogios.
Por esta altura já toda a gente conhece a série, por isso não vou perder tempo a contar a história. “Homeland” teve duas fases bem distintas: durante Brody e pós-Brody. Devo estar em minoria mas comecei a gostar mais de “Homeland” na fase pós-Brody em que se tornou numa série de espionagem pura e dura. Toda aquela parte do prisioneiro de guerra que chega do Iraque com uma lavagem cerebral e vontade de cometer actos terroristas me pareceu demasiado americana, demasiado para consumo doméstico e terapia anti-stress de guerra de uma nação inteira. Aliás, na última temporada a série fecha o círculo e regressa à temática de lidar com as consequências da guerra ao terrorismo sem olhar a meios. Foi sempre isto que a série quis fazer e fê-lo bem feito. Mas gostei mais das temporadas pós-Brody, que assumidamente tomaram o rumo de herdeiras da série “24”. Gostei bastante da temporada passada na Alemanha, numa altura de muitos ataques terroristas na Europa, e aqui estou em minoria também. Mas é assim: um ataque terrorista numa rua europeia de pedras antigas e num sistema de Metro que parece o nosso causa-me mais arrepios do que qualquer explosão distante lá para a América ou para a Ásia. É humano. Quanto mais perto, mais nos toca.
Mas “Homeland” não é “24”, Jack Bauer era um super-herói de metralhadora na mão, Carrie Mathison é uma agente da CIA com um distúrbio bipolar grave que fica incapacitada quando não toma a medicação. O público que gostava de “24” (eu incluída) já exigia mais do que o bom, o mau e o vilão. “Homeland” é uma série dramática e realista, com uma forte carga política, em que muitas vezes questionamos quem é o verdadeiro vilão. Carrie Mathison, de tão implacável e sem escrúpulos, não é uma personagem simpática. Compreendemos o seu ponto de vista (o genérico da série fez questão de no-lo lembrar no princípio de cada episódio) mas aqui não há heróis sem mácula. O que Carrie é, sem qualquer questão, é super-eficiente.
Ainda assim, todos precisamos de heróis, aparentemente, porque durante estes nove anos de “Homeland”, durante alguns momentos mais difíceis, dei por mim a  perguntar-me “o que faria a Carrie Mathison nesta situação?” Confesso que às vezes segui-lhe o exemplo. Na maior parte das vezes não, porque o que Carrie faria era uma completa maluquice, e os heróis também servem para nos ensinar o que não fazer.
Carrie não é apenas doente mental, que o é de facto. Carrie é completamente doida mesmo quando está medicada. Observar Carrie é como ver um acidente na estrada, não conseguimos parar de olhar até quando nos incomoda.
Se dúvidas houvesse sobre o estado mental de Carrie, a cena do banho da bebé, uma das cenas mais chocantes que vi numa série de televisão na última década, esclarece-nos completamente. Carrie é desequilibrada, perigosa para os outros e para si própria. É esta perigosidade que a torna imbatível, descontrolada, mais imprevisível do que os grupos terroristas que persegue. A doença, os “super-poderes”, como ela lhe chama certa vez, torna-a ainda mais obcecada. E Carrie não pára até atingir o objectivo, o que nos leva muitas vezes a pensar que ainda bem que ela não trabalha para o “outro lado”.
Mas esta também é a história de como Carrie perde tudo por causa do seu trabalho. O amor da sua vida, a família, a filha, os amigos. Todas estas perdas, sacrificadas à causa da segurança nacional, deixam dor e amargura, e quanto mais Carrie se aliena de uma vida normal mais a sua vida se torna o trabalho, e o trabalho é tudo, e mais despegada e eficiente ela se torna. É como uma pescadinha de rabo na boca. Carrie perde tudo por causa do trabalho, e quanto mais perde mais se embrenha unicamente no trabalho porque é a única vida que tem. Foi fascinante assistir a este percurso.
Também foi engraçado, às vezes. Como daquela vez em que ela arranjou um encontro com possíveis terroristas e não tinha com quem deixar a bebé, e levou-a no banco de trás do carro, na cadeirinha. Até um simpatizante de terrorista lhe perguntou: “A senhora é doida, traz uma criança para aqui?” Mas onde é que Carrie deixaria passar uma oportunidade destas só porque tinha a filha com ela? Sim, Carrie é doida, a doideira é o seu maior “super-poder”.
“Homeland” teve percalços. O maior de todos na sexta temporada, que teria a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. Os escritores estavam a pensar em Hillary Clinton e deviam ter toda a temporada encaminhada numa direcção quando, de repente, foi Donald Trump quem ganhou as eleições. Desta vez até estes escritores, com provas dadas de que sabem o que fazem, foram apanhados de calças na mão. Tiveram de alterar o enredo a meio e a série levou ali um grande solavanco, mas novamente lhes tiro o chapéu porque se aguentaram à bronca em grande estilo. Um extraterreste que assistisse aos episódios, sem saber nada do que se passa neste planeta, nem perceberia o solavanco que aquilo levou. Mesmo assim, e apesar do choque, nunca a série caiu na armadilha fácil de se tornar propaganda anti-trumpista. Os autores são muito mais ambiciosos do que isso e já estavam a olhar para mais longe no horizonte. Esperemos que o conflito nuclear com o Paquistão da última temporada nunca passe disso mesmo, ficção, e não daquela que aparece depois nas notícias. Às vezes via esta série e tinha medo.
A série não escapou a momentos embaraçosos e irrealistas, mesmo assim. Como daquela vez que Quinn sobreviveu a um teste com gás sarin a que ninguém poderia ter sobrevivido, só para ficar comatoso e incapacitado, mas a série ainda precisava dele e não o deixou morrer. Então, num episódio Quinn quase não conseguia andar sem muletas nem articular duas palavras seguidas, e três episódios depois já estava a dar uma tareia aos terroristas. Ou como daquela outra vez em que Carrie desencanta uma peruca à última da hora, e não apenas uma peruca qualquer mas igual ao cabelo da mulher a quem ela ia salvar, o que levou a internet a conjecturar com quantas perucas é que Carrie anda habitualmente e onde é que as guarda. Ou, um pouco menos engraçado porque foi mais preguiçoso da parte dos autores, quando Carrie é suspeita de participar numa tentativa de assassinato do presidente e Saul consegue tirá-la da prisão para aguardar julgamento em liberdade, e Carrie anda à solta por todo o lado como se não tivesse sido acusada de ser uma ameaça à segurança nacional. Sim, Saul tem poder, mas isto foi um bocadinho longe demais em esticar a credibilidade.
Apesar de tudo, sou da opinião que a crítica foi muito mais impiedosa para com “Homeland” exactamente porque era uma série de grande qualidade onde qualquer pormenor mais atabalhoado saltava à vista como uma nódoa negra. O mais curioso é que nunca me apercebi do quanto gostava desta série enquanto ela existia. Agora vou sentir-lhe a falta. Que ao menos venha outra, no mesmo estilo, que continue a deixar-me de boca aberta.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Catherine of Braganza, de Isabel Stilwell


Este livro é o romance ficcionado da vida de Catarina de Bragança, infanta portuguesa filha de D. João IV que se tornou rainha de Inglaterra ao casar com Charles II em 1662. Acredita-se que tenha sido Catarina de Bragança a introduzir o hábito de tomar chá na corte inglesa, o que depois se generalizou. É muito bom que este livro esteja traduzido em inglês para os ingleses ficarem a saber quem os ensinou a ter maneiras.

Um início muito aborrecido, para não dizer chato

Primeiro que tudo, e em jeito de disclaimer, eu não comprei este livro; foi-me oferecido. E foi-me oferecido em inglês, ainda por cima, quando eu preferia muito mais ter lido o original em português. A tradução não me permite avaliar a escrita, porque uma vez traduzida esta perde logo todas as subtilezas, todas as nuances, os segundos sentidos, a escolha das palavras, o ritmo, a poesia. Logo, fiquei sem saber como é que Isabel Stilwell escreve em português e não posso opinar nada sobre isso. E não conhecendo o original muito menos posso avaliar a tradução propriamente dita. Mas a cavalo dado não se olha o dente.
Segundo, embora eu goste muito de História em geral, não é deste período em particular. Claro que ouvi muitas vezes o saudoso Prof. José Hermano Saraiva a contar a história da Restauração, mas não me lembro de os filhos mais velhos de D. João IV serem mencionados (Catarina talvez fosse) porque, a verdade é esta, nem D. Teodósio nem D. Joana foram relevantes para a História (morreram novos, sem cônjuge nem descendência). Importantes foram os irmãos mais novos de Catarina, D. Afonso (esse mesmo, o tal do filme “O Processo do Rei”, e para quem viu o filme não preciso de dizer mais nada) e D. Pedro, que acabaria por usurpar o trono do irmão e casar com a mulher deste. Mesmo assim, interessei-me por saber mais acerca deste período histórico, ali já quase a entrar na modernidade, muito longe das minhas preferências medievais e renascentistas, e foi basicamente por isso que encarei o desafio de ler este livro.
E devo dizer, sem rodeios, que para mim o princípio do livro foi aborrecido de quase ir às lágrimas. E não tem a ver com o tamanho do livro, 640 páginas, incluindo biografias resumidas e retratos. Não, não é nada disso. Livros assim leio eu às 20/30 páginas por dia. Tive de pensar muito na razão de achar o livro tão aborrecido. Encontrei várias, mas a razão principal (para mim, pelo menos) é esta: a protagonista tem dois anos no princípio do livro, demasiado pequena para nos conseguirmos ancorar nela.
Esta parte vai ser um pouco técnica, mas necessária. Muitas vezes se pergunta quando é que um livro deve começar a contar a história. Há quem diga que deve começar na primeira página, ou logo no primeiro parágrafo, ou mesmo na primeira linha. Eu sou uma leitora muito mais paciente. Espero que o escritor me leve até à história conforme ele achar melhor para produzir o efeito pretendido. Mas aqui, admito, percebi qual é o meu limite. 10% do livro lido e começo a perguntar-me “mas afinal onde é que está a história?”. Claro que sei que é a história de D. Catarina, mas não é isso que o livro nos dá.
E agora outro disclaimer: não tenho nada contra o head hopping. Quem conhece a corrente de escrita anglo-saxónica actual sabe que o head hopping é considerado crime de pena capital e outros exageros. Eu discordo completamente. O head hopping, quando bem feito (e não é fácil fazê-lo bem feito, daí os autores iniciantes serem desaconselhados de fazê-lo), dá-nos a oportunidade de entrar dentro da cabeça de vários personagens no mesmo livro em vez de ficarmos agarrados a um só (como na vulgar “terceira pessoa limitada” que, como o nome diz, é limitada). O livro está efectivamente escrito com head hopping, o que contribui, nesta primeira parte, para não sabermos que personagem seguir e que história acompanhar. Será a história de D. Luísa de Gusmão? De D. João IV? Dos filhos mais velhos deles, Teodósio e Joana? Eu andei ali perdida sem saber a qual dos personagens prestar mais atenção e acabei por não me conseguir ancorar a nenhum. Pior um pouco, como disse, a protagonista é um bebé que não tem nada a dizer e muito menos a pensar. Ainda por cima, aquela família benzoca e beata lembrou-me aquelas famílias benzocas e beatas da Lapa, pior um pouco porque foi há 400 anos e era uma família nobre. Era tudo muito betinho, muito beato para o meu gosto, muitos padres, muitas santinhas, muita igreja, e acabei por não conseguir empatizar com ninguém. Chegando a 10% do livro já suspirava, à procura de motivos para continuar a ler.
Foi então que reparei na árvore genealógica da família e descobri um mistério. [Desculpem o spoiler.] Joana e Teodósio morreram no mesmo ano. Isto interessou-me e comecei logo a imaginar tragédias tipo Guerra dos Tronos. Mas interessou-me porque reparei nas datas, não porque o livro me desse razões. É claro que eu sabia que D. Teodósio não seria rei (não temos nenhum com esse nome) mas daí a morrer no mesmo ano da irmã dá que pensar. Não foi nada tipo Guerra dos Tronos. Tudo indica que morreram de tuberculose. Isto também me surpreendeu, confesso, porque sempre associei a tuberculose a uma época posterior, e não deixa de ser intrigante que um surto de tuberculose só infectasse dois membros de uma família muito próxima.
Mas não culpo o head hopping pelo meu aborrecimento a princípio. Na minha opinião o head hopping apenas obriga o leitor a estar um pouco mais atento. Talvez seja mais fácil escrever desta forma em português do que em inglês, admito, e há truques para tornar o head hopping tão pouco abrupto que o leitor normal nem dá por ele. Ou talvez estejamos já tão habituados a ele, por ser tão frequente na literatura portuguesa, que não nos incomoda. Mas os anglo-saxónicos têm um grande problema com isto, e, por razões semelhantes, com o narrador omnisciente, uma vez que só o narrador omnisciente permite o head hopping. Este livro, com efeito, está escrito em omnisciente, e bem escrito, de forma que não se nota a voz da autora (outra coisa que em geral me desagrada, tirando os casos em que a voz do autor faz parte do livro, o que daria pano para mangas que não pertencem a esta crítica).
O livro melhora imediatamente assim que Catarina cresce e começamos a acompanhar-lhe os pensamentos também, o que finalmente, e tardiamente, na minha opinião, nos permite estabelecer uma relação com a protagonista.
Eu sou daquelas que detesta quando uma crítica diz “se fosse eu fazia antes assim”, mas neste caso, até para exemplificar melhor, vou mesmo dizer que se fosse eu teria começado a história noutro momento, por exemplo, o momento dramático em que Catarina se prepara para partir para Inglaterra, nem que fosse num prólogo. Este momento fulcral permitiria que ela “olhasse para trás”, por assim dizer, e nos levasse à história da família quando ela era criança, mas neste caso já estaríamos ancorados na personagem principal e saberíamos que iríamos voltar ao ponto em que o livro começava. A falta de relação com a protagonista (e a ausência de uma personagem que me cativasse e a “substituísse”)  foi o que me prejudicou mais a leitura no início.

O que eu aprendi que não sabia
A existência da família Bragança em Vila Viçosa durante o domínio espanhol é simples e bucólica. Eu não sabia que D. João gostava de música e que lhe é atribuída a composição do tema natalício Adestes Fidelis. Esta atribuição é contestada e alguns académicos inclinam-se mais para que a autoria seja dos monges de Cister. Curiosamente, este hino é muito mais conhecido em terras anglo-saxónicas do que por cá. Terá sido também uma exportação da nossa Catarina?...
O come, all ye faithful, joyful and triumphant!
O come ye, O come ye to Bethlehem;
Come and behold him
Born the King of Angels:
O come, let us adore Him,
Christ the Lord.
Seja como for, gostei que a autora aproveitasse o Adestes Fidelis atribuindo-o a D. João, o que nos mostrou algumas cenas alegres em família durante a infância de Catarina.
Desconhecia, igualmente, os dois filhos mais velhos de D. João, e especialmente a importância de D. Teodósio, o herdeiro ao trono, que no livro nos aparece como o verdadeiro príncipe perfeito, galante, instruído, inteligente, corajoso (e bonito, a acreditar no retrato). Até que ponto esta representação foi ficcionada não imagino, mas leva-nos a pensar que se perdeu um bom rei com a sua morte precoce.

 D. Teodósio de Bragança, filho primogénito de D. João IV

O que eu já conhecia, mas que o livro me fez perceber em toda a sua dimensão, foi o dote colossal que Charles II recebeu por casar com Catarina. Nada mais nada menos do que as cidades de Bombaim e Tânger, o que sem dúvida ajudou a criar o império inglês de que eles se orgulham tanto, que afinal lhes foi entregue de mão beijada como restos do nosso, sem que eu acredite que as contrapartidas para Portugal tenham sido assim tantas.
Por último, e isto não sabia mesmo, a rima:
What are little girls made of?
Sugar and spice and all things nice,
that is what little girls are made of.
Parece ter sido inspirada por Catarina de Bragança, uma rapariga de estatura pequena, que no seu dote levou açúcar e especiarias na falta dos milhões prometidos por Luísa de Gusmão (mas já lá voltaremos.)
Por falar em Luísa de Gusmão, admito que nunca me apercebi da grande influência que ela teve na governação do reino pós-Restauração. Como disse, não é uma época da História que me excite por aí além. Mas neste livro consegui compreender até que ponto ela foi uma mulher de política e poder. E porque é que até há um liceu Luísa de Gusmão. Ah, foi por isso!
Foi também uma das únicas partes em que consegui estabelecer empatia com a família real. Após a morte de D. Teodósio e de D. Joana, D. João desinteressou-se da governação, que o agastava, e refugiou-se na música. D. Luísa tomou as rédeas do governo. Consegui empatizar com eles porque me pareceram um casal moderno. D. João lembrou-me aqueles accionistas que só vão às reuniões estritamente necessárias para assinar papéis, enquanto D. Luísa era a verdadeira CEO que assumia o papel do marido. Esta dinâmica, sim, é-me conhecida e quase consegui visualizar a versão moderna do casal, ela a chegar do trabalho ao fim do dia, ele entretido com os seus passatempos numa tentativa de escapar à desilusão e ao desgosto. Acontece.
Aproveito para falar também do Padre António Vieira, que neste livro me decepcionou. Talvez a culpa seja minha, mas esperava um personagem mais genial, mais marcante, um homem de craveira intelectual brilhante que se distinguisse sempre que abrisse a boca. Não foi nada disso que apanhei dele. Pareceu-me quase um padre vulgar, lá com as suas ideias que acabaram por nunca ser muito desenvolvidas neste livro. Se calhar porque nunca conseguimos passar tempo suficiente com ele, se calhar porque a sua presença em torno dos príncipes era a de um preceptor que não queria falar de temas controversos?... Sinceramente, estar ali António Vieira ou outro padre qualquer teria tido o mesmo efeito. (Talvez fique para outro livro.)
Gostei muito da maneira como D. Afonso é retratado neste livro. D. Afonso, que (aparentemente) devido a uma doença de infância sofreu problemas de desenvolvimento físico e mental, sempre foi muito mal tratado pela História e pelos historiadores, apelidado de imbecil e pior (veja-se o filme “O Processo do Rei”), considerado incapaz de assumir o cargo para que nasceu. Talvez. Mas aqui o livro mostra dele uma faceta bondosa e inocente, e um carinho pela irmã Catarina, que sempre o tratou com todo o carinho e respeito também, que me fez empatizar com o personagem. A autora vai ainda mais longe, dando-nos a perspectiva de D. Afonso como um jovem ressentido e revoltado por ter sido posto de lado pelos pais, e até nos diz que tanto D. Luísa como D. João lamentam não conseguir gostar do filho Afonso como gostam dos outros, devido às suas limitações, e D. João admite a si próprio que devia dedicar-se mais à educação de Afonso, que agora é herdeiro ao trono depois da morte de Teodósio, mas não consegue, se calhar mesmo por causa disso, porque encarar o filho mais novo como príncipe herdeiro é uma lembrança constante da morte do seu filho mais velho, que arrasou D. João. Toda esta dinâmica familiar é muito dramática e realista, e compreensível de todos os pontos de vista. Catarina deve ser a única pessoa na corte portuguesa que trata o irmão Afonso como a alguém digno de consideração, revelando um grande coração que nos predispõe a empatizar com ela também. Mas gostei especialmente desta versão de D. Afonso, que nos mostra o lado dele nesta história de uma forma que, embora ficcionada, podia muito bem ter sido mesmo assim e que vai contra a corrente do que se pensa maioritariamente sobre o futuro D. Afonso VI. Muito bem feito.

Uma protagonista que não é para mim
Catarina tinha 23 anos quando casou com Charles II, mas a sua mentalidade parece mais a de uma adolescente de 13. A sinopse promete-nos a “coragem de uma infanta portuguesa que se tornou rainha de Inglaterra” mas para mim, muito pessoalmente, era preciso mais para falar de coragem. Como dizer isto sem ser mázinha?... Bem, Catarina não me pareceu exactamente uma inteligência muito brilhante ou um espírito muito profundo. Por exemplo, quando morreram os irmãos Teodósio e Joana, eu senti que sofri mais do que ela. Para Catarina estavam os dois no Céu, com Jesus, e não podiam estar melhor. Tentei esforçar-me ao máximo para ter em mente a religiosidade da época, mas D. João, por outro lado, nunca recuperou, apesar da religiosidade. Da mesma forma, D. Luísa também nunca recuperou completamente da perda dos filhos que lhe morreram bebés. Catarina não tem estes problemas existenciais, nem estes nem outros, e isso fez-me abanar a cabeça do princípio ao fim do livro. Não é uma protagonista para mim. É uma pessoa com quem, na vida real, eu dificilmente podia ter uma conversa intelectual. A superficialidade de Catarina, a infanta mimada, vai-se atenuando à medida que os desgostos a vão marcando, mas nunca a marcam como deviam. Não estou a dizer com isto que é uma personagem irrealista. Há mesmo gente assim. Mas gente assim não me seduz, e esta protagonista nunca me fez sentir grande coisa por ela.
Catarina foi preparada desde rapariguinha para a hipótese de casar com Charles II, nessa altura ainda um herdeiro sem trono. Não só nunca ela questiona, como alimenta esta fantasia acerca de Charles, sonhando com ele ainda antes de o conhecer. As negociações do casamento e do dote foram complicadas porque Charles queria muitos milhões que os portugueses não tinham. D. Luísa queixa-se dos “cofres vazios” (ah pois, não é de agora, começou logo aqui com a guerra da independência) ao mesmo tempo que precisa desesperadamente do apoio inglês contra Castela, que continua a reivindicar Portugal. Uma aliança com um reino protestante, em que a bênção do Papa não contava, era muito desejável para solidificar a independência do reino de Portugal na Europa. Catarina acha isto tudo muito normal e nunca lhe passa pela cabeça que Charles só está interessado no dote. Pelo contrário, quando ele lhe manda umas cartinhas de “amor” a rapariga fica completamente de cabeça perdida por ele, sem sequer o conhecer pessoalmente, muito embora já soubesse que Charles tinha filhos ilegítimos de outras mulheres. Mas, como eu dizia, Catarina tem 23 anos mas aparenta mentalidade de 13. Charles, para ela, é um príncipe encantado que vai ser seu marido e vão ser felizes para sempre. Por isso, não é com “coragem” que ela parte, é com a cabecinha cheia de ilusões.
Ora, podemos pensar que ao chegar a Inglaterra, ao ver que o marido é um mulherengo que muda de amante como quem muda de camisa, que tem tantos filhos ilegítimos que até eu perdi a conta, Catarina abre os olhos e percebe que a vida não é um conto de fadas. Mas não. Ela já ia apaixonada e ficou apaixonada toda a vida, toda a vida a tentar conquistar um marido que é simpático e cortês para com ela, mas nada mais do que isso. Digo mesmo mais, acho que a certa altura Charles até teve pena dela, como eu tive, por ela ser tão parvinha, e foi por isso que nunca se voltou contra ela quando se percebeu que Catarina não conseguia ter filhos, ou quando o movimento protestante fez da rainha católica um alvo. Charles sempre a protegeu, é verdade, com a decência de um homem que nunca a culpou por aquilo que ela não podia oferecer, especialmente um herdeiro, mas ter-se portado de forma decente não o faz um bom marido.
Catarina continuou sempre a iludir-se, mas sempre, sempre, até ficar viúva, de que ele a amava. Era só nisto que ela queria acreditar e nunca conseguiu acreditar noutra coisa. O que também não é irrealista. Há mesmo gente assim, que vive uma vida de fantasia na sua própria cabeça para não ter de lidar com a realidade. Catarina, neste livro, foi dessas, e o próprio Charles lhe fez a vontade de a deixar acreditar no que era melhor para ela. Pelo menos, assim, ela não era infeliz. Deve ter sido a única qualidade de Charles, porque de resto ele era mesmo um marido execrável que obrigava a esposa a conviver com as suas amantes que viviam na própria residência real. Mas isto não torna a personagem Catarina mais simpática aos meus olhos. Só a torna cega porque não quer ver, tipo avestruz.
Esta história foi tão aborrecida que já me estou a aborrecer a escrever esta crítica, imaginem, por isso vou abreviar.
Houve um momento, de facto, em que simpatizei com Catarina. Depois da morte de Charles, Catarina volta para Portugal e, através de cartas, conhecemos o seu estado de espírito. Numa passagem dessas cartas ela admite amargamente que fracassou em tudo o que tinha sonhado: não conseguiu dar um herdeiro a Charles, não conseguiu dar um rei a Inglaterra, não conseguiu promover a religião católica entre os ingleses.
Mas aqui, digo eu, Catarina também nunca aceitou os fracassos e nunca partiu para novos objectivos. Não, ficou sempre agarrada aos mesmos, sem qualquer evolução. Não é muito inteligente insistir em coisas que não resultam, mas foi precisamente o que ela fez a vida toda.
Mas depois ela diz algo que me atingiu. Quando Catarina foi para a Inglaterra, vinda de um país de costumes beatos em que até um decote era considerado imoral, foi considerada provinciana pela corte inglesa. Mas ao regressar, com toda uma nova ideia de moda e de estilo de vida, foi considerada escandalosa. E ela confessa que sente que agora já não pertence a lado nenhum. Isto tocou-me, e identifiquei-me.

 Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra

Recomenda-se
Um dos aspectos mais positivos dos romances históricos é que tornam figuras históricas em pessoas de carne e osso para o leitor. “Catherine of Braganza” consegue fazer isso e agora nunca me vou esquecer destas pessoas. Desconheço se a autora teria melhor material por onde tornar a história mais interessante (foi muito aborrecido para mim, em partes) mas também compreendo a opção de apenas mencionar “de longe” alguns dos capítulos mais sangrentos desta mesma história. Para começar, o célebre defenestramento de Miguel de Vasconcelos no Terreiro do Paço (nem sequer se fala disso). Depois, a morte do pai de Charles II, Charles I, um rei que foi decapitado por traição (essa é uma história que eu gostaria de saber melhor, admito, e a própria Catarina se pergunta que raio de sistema político era aquele em que o parlamento mandava mais do que o rei). Depois ainda, a decapitação do filho ilegítimo mais velho de Charles, James, também por traição, a mando do próprio tio e sucessor de Charles II, James II. Há aqui muito material à Guerra dos Tronos, mas aceito que o intuito da autora tenha sido mesmo evitar as partes sangrentas.
Um outro elogio que a autora merece é a ausência de descrições fastidiosas e demoradas. Admito que tive o livro na prateleira durante muito tempo, e que sempre que olhava para ele imaginava as páginas e páginas de descrições que eu supunha que tinha (é costume nos romances históricos) a descreverem tudo desde os vestidos às espadas aos botões às fivelas, já para não falar da arquitectura e da decoração e dos serviços de mesa, e suspirava, e não tinha coragem de pegar no livro. Graças a Deus, a autora poupou-nos a isso tudo, descrevendo apenas o necessário e o importante. Nos dias que correm, em que basta irmos à net e olhar para um retrato ou uma fotografia, já não são precisas essas descrições exaustivas que faziam a vez da internet e da televisão no século XIX.
Em suma, um romance histórico que não me encantou (por causa da própria história e dos personagens) mas que está suficientemente bem escrito para se recomendar. Teria preferido a inclusão de algumas partes mais sangrentas, mas compreendo a opção.
Por último, uma palavra para a capa lindíssima que fica mesmo bem num local bem visível da estante.

domingo, 14 de junho de 2020

A narrativa política do medo

Transcrevo integralmente o artigo de opinião "A narrativa política do medo" de Teresa Roque publicada no Observador de 7 de Junho de 2020.
Concordo com tudo o que a senhora diz, o medo, as histeria, os media, o poder dos media sobre os governos, a economia.
Faltou falar de uma coisa que esta pandemia veio agravar por cá: o conflito geracional. Não é só do tempo da troika, é de antes ainda, quando gente como eu era explorada como estagiários não remunerados por estes mesmos velhinhos que agora nos pedem para proteger. Mais uma vez, é a geração que está agora nos quarentas ou menos anos quem está a ser mais prejudicado por ainda outra crise, a mesma geração que devia estar activa e a pagar as pensões dos velhinhos que mais uma vez vê os seus rendimentos cortados e ainda mais diminutas as perpectivas de receber uma reforma decente quando chegar a sua vez. A mesma geração que abdicou de ter filhos por não ter capacidades financeiras e redes de apoio, a mesma geração que não vai ter quem lhe pague a reforma.
Agora calo-me e deixo a senhora falar, com os meus parabéns por um artigo tão lúcido e que dá voz a tantos pensamentos discordantes que não têm tido lugar nos media do terror e da histeria.

A narrativa política do medo

Vivemos num limbo em que não é possível fazer planos para o futuro, nem tão pouco pensar em como será a vida na próxima semana ou no próximo mês. Tornámo-nos prisioneiros das decisões do governo.


Vamos ser sinceros: na questão do confinamento, as regras foram alteradas a meio do jogo. Quando foi introduzido pela primeira vez, o principal objetivo do confinamento era o de impedir que os serviços públicos de saúde viessem a ficar sobrecarregados. Todos ficámos chocados com aquelas imagens horríveis vindas de Itália, em que os médicos, por não terem camas de cuidados intensivos suficientes, se viram forçados a fazer de Deus e a escolher tratar, de entre os pacientes críticos, aqueles que tinham mais hipóteses de sobreviver.

Objetivo esse que foi atingido. Não há sinais de que os sistemas de saúde públicos estejam ou possam vir a colapsar. Contudo, o confinamento, apesar de ter vindo a ser progressivamente aliviado, continua. O bicho-papão de uma segunda onda paira sobre nós. As escolas continuam fechadas. Os restaurantes são obrigados a trabalhar com cotas inferiores à sua capacidade. Os hotéis estão vazios e as companhias aéreas cada vez mais fragilizadas.

Tudo isto pode ou não ser necessário. O futuro o dirá. O que me incomoda é a falta de debate acerca de outras alternativas possíveis. E existem alternativas. Os meios de comunicação social, os responsáveis políticos, a OMS e alguns epidemiologistas continuam a acenar-nos com o temor a Deus. Para começar, isto foi tão bem conseguido que, mesmo que o governo decretasse a abertura das escolas amanhã, é de duvidar que a maioria dos pais deixasse os seus filhos regressar às aulas. Também duvido que a maioria dos restaurantes e empresas regresse à normalidade tão cedo. Continuamos a viver num limbo em que não é possível fazer planos para o futuro, nem tão pouco pensar em como será a vida na próxima semana ou no próximo mês. Em suma, tornámo-nos prisioneiros das decisões do governo.

Não houve sequer discussões públicas suficientes sobre se estes confinamentos são ou não epidemiologicamente sensatos. Podemos afirmar que parte da responsabilidade disto cabe aos media. Poucos são os dissidentes a quem é dada voz audível. A contração sem precedentes históricos da vida económica, a destruição dos meios de subsistência das pessoas, as operações e os tratamentos oncológicos que foram suspensos, as consequências emocionais e traumáticas que este confinamento continua a ter, tudo isto é considerado significativamente menos importante do que a própria Covid-19. Ao contrário, a narrativa da política do medo continua a estar na ordem do dia. Todos os dias continuamos a ser bombardeados com o número de mortos ou de novos infetados nas últimas 24 horas. São estes números que permanecem na mente das pessoas e que guiam todos os nossos movimentos. Mas pouca importância é dada aos especialistas que discordam desta política. Também pouca relevância é dada às dificuldades económicas por que as pessoas estão a passar. O nosso mundo parece ter sido resumido a um único tema – Covid-19.

Contudo, só existe uma única verdade, e encontrámo-la? Ainda não existe um conhecimento científico definitivo no que diz respeito à Covid-19. A OMS e todas as autoridades de saúde que têm vindo a seguir as indicações dos especialistas já falharam várias vezes. Em fevereiro, fomos informados de que a Covid-19 não poderia ser transmitida de humano para humano. No início, as máscaras não eram consideradas necessárias, agora são indispensáveis e quem for apanhado sem uma poderá ser multado ou preso, dependendo do país em que viva. Por um lado, libertaram-se alguns prisioneiros, por outro, há pessoas que são presas por supostamente porem outros em risco. Que sentido faz isto tudo?

O modelo estatístico do professor Neil Ferguson foi fundamental para influenciar as políticas de luta contra a pandemia de muitos governos. No entanto, recentemente, ele próprio foi visto a desrespeitar as políticas de distanciamento social que ele mesmo apregoava. Em toda a comunicação social do Reino Unido não se falava de outra coisa se não do facto de ele ter sido apanhado em flagrante a furar o confinamento social por razoes do seu foro pessoal sentimental. O que está aqui em causa é a hipocrisia do seu comportamento. Mas, acima de tudo, o que deveria ser questionado são as medidas impossíveis (e, ouso dizer, não provadas) que ele nos disse para tomarmos. Em primeiro lugar, era de uma grande ingenuidade acreditarmos que todos adeririam religiosamente ao confinamento social global. As pessoas são capazes de ajuizar e de tomar decisões sensatas. Visitar os pais ou companheiros e fazê-lo com sensatez não é exatamente o mesmo que pôr em risco a saúde pública em geral.

O que mais me impressiona é não ter havido, inicialmente, grande discussão e análise crítica dos pressupostos e do modelo matemático do Sr. Ferguson. As suas estatísticas foram consideradas como a única verdade possível. Segundo o seu modelo, o Reino Unido perderia 500.000 vidas e os EUA entre 1 e 2 milhões se nada fosse feito. Atualmente, estão ambos muito longe disto.

Podemos legitimamente argumentar que foram tomadas medidas e que, por isso, não temos uma ideia clara de quais poderiam ser os números reais, caso não as tivéssemos tomado. É verdade. Assim sendo, deveríamos tomar como exemplo um país que não seguiu o cenário de destruição iminente de Ferguson – a Suécia que, segundo a estimativa, pagaria o preço de 40.000 mortes por não ter optado por uma política de confinamento. De momento tem cerca de 4500. Uma ligeira diferença. E quanto à experiência comprovada do professor? Em 2005, previu que 200 milhões de pessoas morreriam de gripe das aves, que afinal matou 282 pessoas em todo o mundo entre 2003 e 2009. Não é o melhor dos currículos.

As previsões de Ferguson, apesar de erradas, podem, inicialmente, ter salvo vidas, não o contesto. Os nossos responsáveis pela saúde pública não estavam preparados para uma pandemia mundial, transmitida pelo ar e altamente infecciosa. A curva pandémica necessitava de ser aplanada. Agora, se isto deveria ter sido conseguido à custa de medidas draconianas é outra questão. Se tivéssemos optado por uma abordagem mais focada, em oposição a um confinamento social global que fechou em casa todas as pessoas jovens e saudáveis, talvez tivéssemos alcançado o mesmo resultado em termos de sinistralidade humana. Poderíamos ter concentrado esforços e mais recursos para proteger aqueles que mais precisavam da nossa proteção: pessoas em lares de idosos e pessoas com doenças crónicas e outras condições subjacentes que constituem os grupos de maior risco para contrair o coronavírus.

Nada disto foi discutido. Tomámos como exemplo a situação da China e da Itália e aplicámos o mesmo remédio, prejudicando seriamente a nossa economia no processo e causando grandes estragos e miséria no bem-estar financeiro, emocional e físico das pessoas. E, contabilizámos as mortes que poderiam ter sido evitadas se as pessoas se tivessem deslocado em busca de assistência médica quando dela necessitavam em vez de terem ficado em casa, com medo de ir aos hospitais?

As nossas sociedades têm vindo a tornar-se completamente avessas ao risco e há uma autêntica relutância em usar o bom senso. Já não contemplamos o que são bens sociais e necessidades sociais. Há algum tempo nas redes sociais, circulavam imagens perturbadoras de creches francesas, onde as crianças tinham quadrados marcados no chão aos quais deveriam estar confinadas. Em primeiro lugar, isto deita por terra a própria finalidade de um infantário, local privilegiado para que as crianças aprendam a interagir socialmente. Em segundo lugar, e quem já teve alguma experiência em lidar com crianças pequenas sabe-o, é quase impossível fazer com que as crianças cumpram essas regras. Já é bastante difícil conseguir que se mantenham nos seus lugares à mesa, quanto mais obrigá-las a ficarem confinadas a um quadrado desenhado no chão quando têm os seus amigos a poucos metros de distância. Por fim, esta estratégia constitui uma situação que é completamente antinatural e francamente desumana. Ainda para mais, é uma regra que lhes está a ser imposta numa altura em que não há ainda provas científicas de que represente de facto um enorme risco para a saúde permitir que as crianças estejam a menos de dois metros umas das outras. De momento, as evidências sugerem que é bem menos provável que ocorra transmissão do vírus entre crianças pequenas do que entre adultos.

Há uma narrativa crescente de que a Covid-19 irá tornar-se endémica, ou seja, de que será uma doença que nunca desaparecerá completamente e se tornará parte da família de doenças com as quais tiremos de nos habituar a viver. A Covid-19 não foi uma pandemia sem precedentes. Sem precedentes foi a nossa reação a esta doença e a forma como continuamos a reagir-lhe.

O problema agora é: como será que podemos sair do confinamento? As pessoas foram tão eficazmente assustadas que vai ser muito difícil fazer com que saiam para ir trabalhar, ir a restaurantes, ir de férias ou regressar à escola. Uma coisa é abrir os restaurantes; outra, completamente diferente, é persuadir as pessoas a sair para irem comer fora.

Todas estas novas regras trazem consigo uma grande indefinição. Afinal de que estamos realmente à espera? De uma cura milagrosa ou de uma vacina que tenha sido descoberta apressadamente sem que tenha sido suficientemente testada? Quantos estarão dispostos a correr o risco de administrar aos seus entes queridos uma vacina cujos efeitos secundários não são ainda suficientemente conhecidos? Deveremos aguardar que a doença simplesmente desapareça?

Com toda esta incerteza, como é possível gerir um negócio com sucesso? Se tem um restaurante e sabe que, neste momento, terá de sentar os seus clientes a dois metros de distância uns dos outros, como poderá servir um número de pessoas suficiente para cobrir as suas despesas? Não há países sem economia. Uma economia não é meramente um conceito abstrato. É o que nos permite ter a vida que temos. Não é possível ter uma vida como a que conhecemos sem ter uma economia que funcione. A sociedade implodiria e todos seríamos atirados de volta para tempos indesejáveis, em que não teríamos nada mais com que contar a não ser connosco mesmos.

Os países têm vindo a definir diferentes políticas e a tomar diferentes medidas para sair do confinamento. O conhecimento científico não está solidificado. Os governos cometem erros. Não são infalíveis. As ideias mudam. Nem sequer há consenso entre epidemiologistas e outros especialistas desta área. Com toda esta incerteza no ar, alguém terá de tomar decisões. Mas deixem que estas se baseiem o mais possível na ciência, nos factos e no senso comum, e não na política. Permitam que estas decisões tenham por base um equilíbrio de importância entre todas as dimensões do problema, e que não contemplem apenas uma. Acima de tudo, ouçam-se também os discordantes, aqueles que sempre acharam que o confinamento total não era uma boa ideia. Afinal, a liberdade de expressão e o protesto político sempre foram algo pelo qual as pessoas estavam dispostas a dar a vida.

sábado, 13 de junho de 2020

Coronavírus: as máscaras protegem?

Artigo de Gabriel Branco, Diretor do Servico de Neurorradiologia do Hospital Egas Moniz. no Observador de 6 de Junho de 2020. Transcrito integralmente.

Bases científicas sobre o uso de máscaras para proteção individual e social

As máscaras são para ser usadas por pessoas doentes em contacto com pessoas saudáveis, pelos cuidadores de pessoas doentes e por quem desinfeta zonas hospitalares referenciadas, por mais ninguém.
 
A população em geral tem sido aconselhada ou obrigada por Lei a usar máscaras que cobrem a boca e nariz, sem que as autoridades responsáveis por essas sugestões ou ordens tenham fundamentado de forma clara as provas da eficácia dessa prática, no que se refere à prevenção de doença respiratória viral.

Parece ser útil no interesse da saúde pública conhecer os dados científicos disponíveis sobre a eficácia dos diversos de tipo de máscaras na proteção contra estes agentes.

Existem basicamente 3 tipos de máscaras:

    Máscara têxtil reutilizável após lavagem;
    Máscara de tipo cirúrgico, de elásticos ou atilhos;
    Máscara filtro respiratório, designadas P1 a P3;

As máscaras cirúrgicas foram concebidas para proteger o campo operatório, filtrando 95% das bactérias expiradas, por reterem partículas a partir de 1000 nm. Não foram concebidas como filtros respiratórios de proteção individual.

A letra P é uma abreviatura de FFP (Filtering Face Piece); estas são as únicas máscaras que podem ser consideradas como filtros respiratórios. A maior parte das máscaras FFP contêm um filtro plástico central, mas muitas máscaras correntemente em uso em Portugal, com código KN300, não têm esse componente, embora possam ser classificadas como P1 ou P2.

Nos EUA a sigla N95 é equivalente a P2 ou P3 na Europa. Os números 95 e 300 significam que há uma capacidade de filtrar 95% ou mais de partículas de dimensão igual ou superior a 300 nm.

Revendo a literatura científica, devemos considerar a superioridade dos RCT sobre os artigos gerais. RCT são Estudos Randomizados Controlados e representam o grau de prova máxima que é possível obter em ciências médicas e biologia.

Especificamente sobre a proteção de máscaras contra os vírus da gripe, destaca-se um grande artigo de revisão crítica sobre a eficácia das máscaras, cuja conclusão passo a citar: “Nenhum dos estudos estabeleceu uma relação conclusiva entre o uso de máscara/respirador e a proteção contra a infeção por gripe (influenza): Influenza Journal (DOI:10.1111/j1750-2659.2011.00307.x)

A eficácia da máscara cirúrgica é definitivamente colocada em causa num RCT de boa qualidade, que compara a eficácia da máscara cirúrgica com os filtros respiratórios: A cluster randomized clinical trial comparing fit-tested and non fit-tested N95 respirators to medical masks to prevent respiratory virus infection in health care workers. Influenza and Other Respiratory Viruses (DOI:10.1111/j.1750-2659.2010.00198.x)

Ou seja, a utilização de máscaras têxteis no âmbito da prevenção de doença respiratória viral é prejudicial, pelo que a sua circulação deveria ser proibida.

Assim, a Organização Mundial da Saude (OMS) publicou em 6 de Abril de 2020 uma reavaliação sobre o uso das máscaras de proteção individual, sobre o assunto específico do Coronavirus. E concluiu: “as máscaras continuam a estar recomendadas apenas para certos grupos específicos – doentes infetados com o SARS-Cov-2, pessoas com sintomas, cuidadores ou profissionais de saúde em contacto com doentes infetados ou suspeitos.”

Nos estudos científicos as máscaras cirúrgicas são utilizadas por um máximo de 4h. O uso continuado de máscaras, sobretudo em exercício, reduz a oxigenação e aumenta a taxa de CO2. A acumulação de humidade e a concentração de partículas captadas do ar disponibiliza na máscara um maior número de agentes nocivos ao utilizador, portanto confere um risco maior de infeção do que o da respiração livre.

Não é assim compreensível a posição da DGS e do Governo português, que emitem ordens sobre o uso de máscaras contra os dados científicos, mas também contra as próprias diretrizes da OMS, o que constitui um atentado contra a saúde pública.

As máscaras são para ser usadas por pessoas doentes em contacto com pessoas saudáveis, pelos cuidadores de pessoas doentes e por quem desinfeta zonas hospitalares referenciadas, por mais ninguém.

Não há qualquer indicação para o uso generalizado de máscaras em pessoas saudáveis na comunidade, podendo mesmo ser afirmado com propriedade, que o seu uso acarreta riscos tangíveis.