quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
“Dexter” (série TV)
Nunca pensei vir a fazer uma crítica sobre Dexter. A verdade é que perdi o interesse na série algures durante a temporada 2 ou 3, e embora tenha continuado a ver (ainda dava na RTP2!), confesso que era mais hábito do que outra coisa. Isto por várias razões:
1, tornou-se repetitivo. Em todos os episódios, Dexter enrolava alguém em plástico e espetava-lhe uma faca no peito. Dois e três anos disto, convenhamos, aborrece. Aborrece tanto que não percebo porque é que ele não arranjou outro hobby entretanto. Eu não suportava o tédio de fazer sempre a mesma coisa, mas também não sou serial killer, sei lá eu!
2, aquela esquadra de polícia devia ter os polícias mais estúpidos do planeta! Certo, eram polícias normais, não eram profilers do BAU (“Mentes Criminosas”), mas por amor de Deus, nunca ninguém ali leu um livro de psicologia, ou teve uma sessão de formação sobre “Como reconhecer um sociopata”? Apesar de tanta inépcia, duas pessoas chegaram a desconfiar de Dexter, o detective Doakes, logo no princípio, e outra personagem que não vou mencionar para não estragar o suspense a quem ainda não viu as duas últimas temporadas, e ambas foram desacreditadas. A meio da série, um reputado profiler do FBI fez consultadoria com a esquadra (salvo erro, por causa do serial killer Trinity) e não suspeitou de nada (para o que deve ter contribuído o facto de que ele andava a dormir com a irmã de Dexter, mas ainda assim!...). E Rita, a mulher do Dexter! Que idiota não percebe que o marido é um serial killer?! Esta personagem era tão burra, e tão desinteressante, que quando alguém a matou eu encolhi os ombros. Já não serei tão dura quanto a Debra, irmã de Dexter, porque há uma certa cegueira entre parentes chegados que faz com que as pessoas não queiram acreditar nos próprios olhos, especialmente quando o pai de ambos fez os possíveis e impossíveis para esconder da filha a verdadeira natureza do irmão adoptivo. Mesmo assim, uma vez levantada a suspeita (e a suspeita foi levantada), não podia haver um único polícia naquela esquadra que não ficasse atento e de sobreaviso. Em vez disso, amnésia geral.
3, tirando o próprio Dexter, que nos informava dos seus processos mentais em monólogo interior e em conversas imaginárias com o pai falecido (James Remar como Harry Morgan, um dos papéis mais ingratos de uma vida porque nunca ninguém se lembra do personagem que “não existe” embora tenha aparecido do primeiro ao último episódio), todos os outros personagens eram superficiais, incultos, pouco inteligentes (como já expliquei) e de uma mediocridade psicológica de dar dó. (Aquele Masuka, valha-me Deus!...)
Não comecei este artigo com a sinopse de “Dexter” porque, por esta altura, não deve haver ninguém que não saiba quem ele é, mas na remota eventualidade de alguém mais distraído que nunca tenha ouvido falar da série, Dexter é um serial killer que trabalha como técnico forense numa esquadra de Miami. O que o distingue dos serial killers “normais” é que Dexter só mata pessoas que se enquadrem no código que lhe foi ensinado pelo seu pai: Dexter caça os criminosos, os violadores, os outros assassinos. O código de Harry permite a Dexter satisfazer a sua necessidade de matar sem vitimar inocentes contribuindo para a “limpeza” da sociedade (como ele diz, “deitar fora o lixo”).
O grande sucesso de “Dexter” deve-se ao código de Harry. Não acredito que os espectadores estivessem interessados em ver um serial killer matar inocentes, impunemente, semana após semana, temporada após temporada. Mas o que Dexter faz é vigilantismo. Dexter é um justiceiro das trevas que dá sumiço a muitos criminosos que a polícia não consegue apanhar por falta de provas. Dexter é o papão dos maus. (Surpreende-me, agora que penso nisto, que a série não tenha explorado esta vertente. Durante anos o Bay Harbor Butcher foi divulgado nos media, ainda que nunca correctamente identificado, e sabia-se qual era a sua vitimologia. Estranho que não se espalhasse o pânico entre os criminosos de Miami. Com a frequência com que Dexter matava, seria de esperar que esse “papão” fizesse tremer muita gente em certos meios... A série não se lembrou.)
O que Dexter faz encontra simpatia nosso sentido de Justiça, inato, que tanto mais nos atormenta quanto mais horrível o crime que escapa impune. Este sentido de Justiça permite-nos assistir a “Dexter” sem nos incomodarmos com o “método”. Ninguém lamenta as vítimas de Dexter, que não são vítimas nenhumas, que na maioria dos casos até são piores do que ele. Dexter é o grande anti-herói, mas Dexter é também um herói, no pleno sentido do termo, e a sua complexidade de super-anti-herói era o que nos mantinha presos à série, semana após semana.
Desde os primeiros episódios, questionei-me muito se um psicopata conseguiria seguir um código de conduta. Parece-me que não, porque os verdadeiros sociopatas são demasiado narcisistas para deixar de matar quem lhes apetece por causa de um código. Será Dexter realmente um psicopata, ou uma vítima de stress pós-traumático devido ao que assistiu na infância, a quem essa noção foi inculcada na cabeça por um pai adoptivo demasiado preocupado? A relação de Dexter com o pai não era falsa e vazia de afectos, tal como não são falsas e vazias de afectos as relações com a irmã e o filho. Não são relações oportunistas ou manipuladoras (mesmo tendo em conta que a princípio Dexter acredita que tem de mantê-las, unicamente, e ao emprego, e ao casamento, como disfarce de “pessoa normal”). Mas estas relações são autênticas, afectivas, e ele próprio o admite mais perto do final. Um psicopata não consegue sentir estas afeições profundas. As pessoas à sua volta são peões no seu jogo, nada mais, e a perda de uma é substituída por outra. (O que de certa forma aconteceu no caso de Rita, embora Dexter quase tenha sido “obrigado” a casar, à moda antiga.)
Outro “pormenor” importantíssimo para o sucesso da série é que Dexter não é um sádico. A maneira como mata é rápida (pelo menos nunca se viu o contrário): faca no coração. Se houvesse tortura e sadismo, muitos espectadores talvez não conseguissem suportar. A única “tortura” infligida na mesa de matança é psicológica, quando Dexter confronta a “vítima” com os seus próprios crimes. De certa forma, o que se passa é um julgamento em que é explicado ao condenado a razão por que foi escolhido para morrer. (Por isso escrevi “tortura” entre aspas, porque é uma espécie de "leitura da sentença", salvas as distâncias.) A execução, de seguida, é rápida e limpa. O que coloca mais questões quanto à suposta psicopatia de Dexter. Os serial killers têm prazer no acto de matar. Um prazer, especialmente quando é utilizada uma faca, que todos os peritos concordam ser de natureza sexual ou seu derivativo. Ao contrário, por exemplo, de um assassino contratado para quem abater o alvo é puramente profissional. Como é que a necessidade de Dexter se satisfaz com uma morte tão rápida? Não bate muito certo com o que sabemos de assassinos psicopatas.
Mas decidi fechar os olhos e admitir que Dexter, como personagem ficcional, tinha “licença criativa” para ser um psicopata “diferente”, mais “humano”, mas nunca realista, apenas ficcional, e aceitei o personagem como tal. Deu-me um certo gozo pessoal que na última temporada a Dra. Vogel (que o conhece desde pequeno) tenha começado a duvidar do seu diagnóstico ao analisar que as acções altruístas de Dexter para com a família, e amigos, e envolvimentos românticos, não encaixam no perfil de sociopata sem empatia. (O que vem dar-me razão, daí o gozo pessoal.) Depois de ver a série inteira, estou ainda mais inclinada para a hipótese de que Dexter possa não ser um sociopata. Se o fosse, e sem querer revelar o fim, Dexter não decidiria que não pode ficar com ninguém porque destrói (involuntariamente, mas destrói) a vida de todos os que lhe são próximos. E é verdade, destrói. E ele não deseja isso para a irmã, para a mulher que ama (Dexter ama) e muito menos para o filho. Ora, um verdadeiro sociopata estaria já a pensar como usar o puto para atrair as vítimas mais depressa. Um verdadeiro psicopata estar-se-ia nas tintas para os danos colaterais que provoca nos outros porque um verdadeiro psicopata só se preocupa com uma pessoa: ele mesmo. Um verdadeiro psicopata não se sacrifica pelos outros; sacrifica os outros por si.
Não acredito que seja possível na vida real, mas Dexter, personagem ficcional, pode pertencer a uma área cinzenta em que existem traços de psicopatia, sem dúvida, reforçados pela lavagem cerebral que lhe foi feita desde a infância: “És um monstro, não consegues controlar a necessidade de matar, tens de aprender a matar as pessoas certas sem seres apanhado”.
A última viagem do Dark Passenger?
Esta é uma série estreada em 2006, num outro tempo televisivo em que os espectadores se contentavam com programas de “polícias e ladrões”, um caso por episódio (“Law and Order”, por exemplo), nada de muito complicado e sem um enredo transversal a todos os episódios. Quando Dexter apareceu, relatando na primeira pessoa os pensamentos de um serial killer, foi refrescante e inovador. Mas o formato manteve-se quase o mesmo. Os enredos giravam em torno de Dexter e das personagens com quem se cruzava e com quem partilhava o segredo, terminando cada temporada ou mais ou menos da mesma maneira, com estas novas personagens a acabar na mesa forrada a plástico (com a rara excepção de Lumen, mais um exemplo da empatia de Dexter).
Sempre tive a sensação sobre esta série que os autores queriam mergulhar em águas profundas (como eram profundos os mergulhos na psique sombria de Dexter) mas nunca saíam da piscina dos pequeninos que o rodeava e onde a série chapinhava sem fim. Como se temessem que a introdução de mais do que uma personagem profunda fosse demasiado complicada para a audiência que se contentava com uma caçada por episódio. Durante seis temporadas a série chapinhou neste formato, a ponto de se tornar repetitiva e desinteressante.
O meu interesse só tornou a despertar na sétima e penúltima temporada, quando Debra descobre quem o irmão é. E então, sim, pelo menos quanto a Dexter e Debra, a série mergulhou em águas profundas. As restantes personagens nunca saíram da piscina dos pequeninos mas Dexter e Debra mergulham no poço sem fundo e perdem o pé, no bom sentido.
Penso que deve ter sido a primeira vez que a série me arrebatou, sempre que Debra confrontava Dexter, e a si própria, com a incredulidade, e a repulsa, e o questionar de tudo em que acreditava daquele irmão adoptivo que julgava perfeito, mais do que isso, que julgava um modelo a seguir! Grande performance de Jennifer Carpenter (Debra), tão mais emocional e de cabeça perdida quanto Michael C. Hall (Dexter) permanece impassível. Bem, já não tão impassível, porque pela primeira vez na vida importa-lhe, importa-lhe muito, o que Debra pensa dele. Pela primeira vez, Dexter não está a lidar com psicopatas como o Ice Truck Killer, ou o Trinity Killer, ou o Doomsday Killer, ou a outra maluca inglesa, ou o outro maluco que queria que Dexter o ensinasse a matar, ou com aquela pobre rapariga Lumen num estado psicológico feito em frangalhos. Desta vez Dexter estava a lidar com uma pessoa normal, uma pessoa com uma consciência moral, uma pessoa que lhe importava, a última pessoa que queria perder, a quem mais certamente perderia.
(Curiosidade: para meu grande espanto, Jennifer Carpenter e Michael C. Hall foram casados na vida real, enquanto a série decorria, e nunca uma pitada de química romântica transpareceu entre eles! Se não me tivessem dito eu não tinha desconfiado. Grandes actores, ambos!)
E aqui estamos, e gostei tanto das duas últimas temporadas da série, finalmente a interacção Dexter/Debra sem segredos!, que aqui estou a declarar o meu arrebatamento. Sei que muitos fãs não gostaram do último episódio, mas que se lixem, eu adorei o último episódio! Aquela cena em que pela última vez Dexter sai no Slice of Life e lança à água aquele corpo amortalhado num lençol branco, durante uma tempestade iminente, e o mar está negro, e o céu está negro, negro, negro, de meter medo, foi tão épico, foi tão gótico! Foi o mergulho em águas profundas de que a série andou à procura desde o princípio!
Sem querer deixar spoilers, li em comentários que muitos fãs ficaram piamente convencidos de que no último episódio Dexter desiste de matar. Quanto a isso só digo uma coisa: não me parece!
Aqueles que, como eu, se desapontaram com a série quando esta se tornou uma dança de psicopatas, fariam bem em dar a Dexter uma segunda oportunidade a partir da sétima série. Sei que vão ficar surpreendidos. Agradavelmente, espero eu.
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