Capítulo “Espíritos errantes”
A alma reencarna imediatamente após a separação do corpo? [pergunta]
– Algumas vezes pode reencarnar imediatamente, mas normalmente só após intervalos mais ou menos longos. (…)
Em que se torna a alma no intervalo das encarnações? [pergunta]
– Espírito errante que aguarda nova oportunidade e a espera.
Qual a duração desses intervalos? [pergunta]
– De algumas horas a alguns milhares de séculos. Não há, propriamente falando, limite extremo estabelecido para o estado de erraticidade, que se pode prolongar por muito tempo, mas que nunca é perpétuo. O Espírito sempre encontra, cedo ou tarde, a oportunidade de recomeçar uma existência que sirva de purificação às suas existências anteriores.
Essa duração está subordinada à vontade do Espírito ou pode ser imposta como expiação? [pergunta]
– É uma consequência do livre-arbítrio. Os Espíritos têm perfeita consciência do que fazem, mas para alguns é também uma punição que a providência lhes impõe. Outros pedem para que se prolongue, a fim de progridem nos estudos que só podem ser feitos com proveito na condição de Espírito.
A erraticidade é, por si mesma, um sinal de inferioridade dos Espíritos? [pergunta]
– Não, porque existem Espíritos errantes de todos os graus. A encarnação é para o Espírito um estado transitório, como já dissemos, no seu estado normal o Espírito está liberto da matéria.
De que maneira os Espíritos errantes se instruem? É como nós? [pergunta]
– Eles estudam o seu passado e procuram os meios de se elevar, isso lhes inspira ideias que não tinham antes.
Os Espíritos errantes são felizes ou infelizes? [pergunta]
– São felizes ou infelizes de acordo como seu mérito. São infelizes e sofrem por causa das paixões das quais ainda conservaram a essência ou são infelizes segundo estejam mais ou menos desmaterializados. No estado de erraticidade, o Espírito entrevê o que lhe falta para ser mais feliz e procura os meios de alcançá-lo. Porém, nem sempre lhe é permitido reencarnar conforme sua vontade, o que é para ele uma punição.
Pois.
Capítulo “Mundos transitórios”
Existem, como já foi dito, mundos que servem aos Espíritos errantes como estâncias transitórias ou locais de repouso? [pergunta]
– Sim, existem. São particularmente destinados aos seres errantes, que podem neles habitar temporariamente. São como acampamentos, campos para repousar de uma erraticidade bastante longa, condição sempre um tanto angustiante. São posições intermediárias entre os outros mundos, graduados de acordo com a natureza dos Espíritos que podem alcançá-los e onde podem desfrutar de um bem-estar relativamente maior ou menor, conforme o caso.
Os Espíritos progridem durante a sua estada nos mundos transitórios? [pergunta]
– Certamente. Os que neles se reúnem é com o objectivo de se instruir e poder mais facilmente obter a permissão de alcançar lugares melhores e chegar à posição que os eleitos atingem.
Gosto desta ideia de mundos transitórios, destes acampamentos de "auto-ajuda". Espero que tenham muitos drunfos e muita terapia porque há gente que sai daqui feita em farrapos, sem vontade nenhuma de progredir ou sequer de continuar.
Capítulo “Prelúdio do retorno”
O Espírito pode antecipar ou retardar o momento da sua reencarnação? [pergunta]
– Pode antecipá-lo, solicitando-o nas suas preces. Pode também retardá-lo, recuar diante da prova, porque entre os Espíritos há também os cobardes e os indiferentes; mas não o fazem impunemente. Ele sofre, como quem recua diante do remédio salutar que pode curá-lo.
Se um Espírito se encontrasse bastante feliz por estar numa condição mediana na espiritualidade e se não tivesse ambição de progredir, poderia prolongar esse estado indefinidamente? [pergunta]
– Não, não indefinidamente. Progredir é uma necessidade que o Espírito sente, cedo ou tarde. Todos devem elevar-se, esse é o propósito do destino dos Espíritos.
A união do Espírito com um determinado corpo pode ser imposta pela Providência Divina? [pergunta]
– Pode ser imposta, bem como as diferentes provas, especialmente quando o Espírito ainda não está apto a fazer uma escolha com conhecimento de causa. Como expiação, o Espírito pode ser obrigado a se unir ao corpo de uma criança que por seu nascimento e pela posição que terá no mundo poderão ser para ele uma punição.
A reencarnação imposta é a minha concepção de Inferno.
Analisemos bem esta ideia: onde é que está o livre arbítrio se "todos devem elevar-se, esse é o propósito do destino dos Espíritos", ou sofrer? Como é que, pelo uso da força, se poderia alguma vez conduzir alguém à perfeição? À falsidade, à loucura, ao subservientismo, isso sim. Durante a vida na Terra, há pelo menos uma maneira de escapar à tirania: a morte. Como escapar da tirania eterna? Haverá por fim, como diz o Apocalipse, um extermínio de todos os iníquos, ou, para os "não alinhados", simplesmente sofrimento perpétuo?
Ideias que não cruzavam o espírito bem intencionado destes participantes nas conversas com os Espíritos antes de 1857, porque não tinham visto o Inferno na Terra. Tudo, para estes ingénuos, eram rosas e cantos angelicais.
Capítulo “Escolha das provas”
Na espiritualidade, antes de começar uma nova existência corporal, o Espírito tem consciência e previsão das coisas que acontecerão durante sua vida? [pergunta]
– Ele mesmo escolhe o género de provas que quer passar. Nisso consiste o seu livre arbítrio.
Então não é Deus que impõe os sofrimentos da vida como castigo? [pergunta]
– Nada acontece sem a permissão de Deus, que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Perguntareis, então, porque Ele fez esta lei em vez daquela. Ao dar ao Espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade dos seus actos e de suas consequências, nada impede o seu futuro; o caminho do bem está à frente dele, assim como o do mal. Mas, se fracassa, resta-lhe uma consolação: nem tudo está acabado para ele. Deus, na sua bondade, deixa-o livre para recomeçar, reparando o que fez de mal. É preciso, aliás, distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é obra do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que o criastes, foi Deus; mas tendes a liberdade de vos expor a ele, por terdes visto aí um meio de adiantamento, e Deus o permitiu.
Se o Espírito tem a escolha do género de prova que deve passar, todas as dificuldades que experimentamos na vida foram previstas e escolhidas por nós? [pergunta]
– Todas não é a palavra, porque não se pode dizer que escolhestes e previstes tudo o que vos acontece neste mundo até nas menores coisas. Vós escolhestes os géneros das provas; os detalhes são consequência da situação em que viveis e, frequentemente, das vossas próprias acções. Se o Espírito quis nascer entre criminosos, por exemplo, sabia dos riscos a que se exporia, mas não tinha conhecimento dos actos que viria a praticar; esses actos são efeito de sua vontade ou do seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, ao escolher um caminho, terá uma luta a suportar; sabe a natureza e a diversidade das coisas que enfrentará, mas não sabe quais os acontecimentos que o aguardam. Os detalhes dos acontecimentos nascem das circunstâncias e da força das coisas. Somente os grandes acontecimentos que influem na vida estão previstos. Se seguis um caminho cheio de sulcos profundos, sabeis que deveis tomar grandes precauções, porque tendes a probabilidade de cair, mas não sabeis em qual deles caireis; pode ser que a queda não aconteça, se fordes prudente o bastante. Se, ao passar na rua, uma telha cai na vossa cabeça, não acrediteis que estava escrito, como se diz vulgarmente.
O Espírito, nas provas que deve passar para atingir a perfeição, deve experimentar todas as tentações? Deve passar por todas as circunstância que podem incitar o orgulho, a inveja, a avareza, a sensualidade, etc? [pergunta]
– Certamente que não, uma vez que sabeis que há Espíritos que, desde o começo, tomam um caminho que os livra de muitas provas; mas, aquele que se deixa levar pelo mau caminho corre todos os perigos desse caminho. Um Espírito, por exemplo, pode pedir a riqueza e esta ser concedida; então, de acordo com o seu carácter, poderá tornar-se avarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou entregar-se a todos os prazeres da sensualidade; mas isso não quer dizer que tenha que passar forçosamente por todas essas tendências.
Quando o Espírito usa o seu livre-arbítrio, a escolha da existência corporal depende sempre de sua vontade, ou essa existência pode ser imposta pela vontade de Deus como expiação? [pergunta]
– Deus sabe esperar: não apressa a expiação. No entanto, perante a Lei, um Espírito pode ter uma encarnação compulsória quando, pela sua inferioridade, ou má vontade, não está apto a compreender o que lhe poderia ser mais útil e quando essa encarnação pode servir à sua purificação e adiantamento, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.
Como o Espírito escolhe as provas que quer suportar? [pergunta]
– Ele escolhe as que podem ser para ele uma expiação, pela natureza dos seus erros, e lhe permitam avançar mais rapidamente. Uns podem escolher se impor uma vida de miséria e privações para tentar suportá-la com coragem; outros querem se experimentar nas tentações da riqueza e do poder, muito perigosas, pelo abuso e mau uso que delas se podem fazer e pelas paixões inferiores que desenvolvem; outros, enfim, preferem se experimentar nas lutas que têm que sustentar em contacto com o vício.
O homem na Terra, sob a influência das ideias terrenas, vê nas suas provas apenas o lado doloroso. Por isso lhe pareceria natural escolher as que, no seu ponto de vista, pudessem se conciliar com os prazeres materiais. Porém, na vida espiritual, compara esses prazeres ilusórios e grosseiros com a felicidade inalterável que percebe, e, então, nenhuma importância dá aos sofrimentos passageiros da Terra. O Espírito pode, em vista disso, escolher a prova mais rude e, consequentemente, a mais angustiosa existência, na esperança de atingir mais depressa um estado melhor, como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável para se curar mais depressa. [Allan Kardec]
O Espírito pode se enganar sobre a eficácia da prova que escolheu? [pergunta]
– Ele pode escolher uma que esteja acima de suas forças e, então, fracassar. Pode também escolher alguma que não lhe dê nenhum proveito, que resulte numa vida ociosa e inútil; mas, então, uma vez de volta ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou e pede para reparar o tempo perdido, numa outra encarnação.
Um homem que pertença a uma raça* civilizada poderia, por expiação, reencarnar numa raça selvagem? [pergunta]
– Sim mas isso depende do género de expiação; um senhor que tenha sido cruel com os seus escravos poderá tornar-se escravo por sua vez e sofrer os maus tratos que fez os outros suportar. Aquele que um dia comandou poderá, numa nova existência, obedecer até mesmo àqueles que se curvaram à sua vontade. É uma expiação que lhe pode ser imposta, se abusou do seu poder. Um bom Espírito também pode escolher uma existência em que exerça uma acção influente e encarnar dentro de povos atrasados, para fazer com que progridam, o que, neste caso, é para ele uma missão.
* Por “raça”, à linguagem da época, devemos entender “povo” ou “sociedade” ou mesmo “cultura”, sem qualquer conotação racista. [Nota minha]
Esta é a parte mais interessante da doutrina espírita. Não é Deus que impõe os castigos. Deixa ao homem castigar-se a si próprio.
Voltamos a falar do jogo de computador, dos níveis, e do pau e da cenoura. O "pau", aqui, é o sofrimento de sucessivas reencarnações infelizes; a "cenoura", o escapar a elas através de um aperfeiçoamento previamente estabelecido, que o Espírito antevê na sua estadia éterea entre encarnações, e anseia por alcançar. Este aperfeiçoamento abre-lhe as portas para a tal felicidade "pura e eterna" que ele tem que querer para si. Para tal, oferece-se para voltar ao jogo e tentar novamente passar de nível.
Mas vamos considerar que de facto não é possível aqui, neste mundo de expiação e sofrimento, antever qualquer clarão de felicidade "pura e eterna". Vamos considerar que o Espírito se submete às provas de sua verdadeira e livre vontade. O Espírito decide então expiar as suas faltas e/ou aperfeiçoar-se, escolhendo para isso uma existência que lho permita fazer, mas nessa existência não se recorda de que fez essa escolha.
Capítulo “Esquecimento do passado”
Como o homem pode ser responsável por actos e reparar faltas das quais não tem consciência? Como pode aproveitar a experiência adquirida em existências caídas no esquecimento? Poderia conceber-se que as adversidades da vida fossem para ele uma lição ao se lembrar do que as originou; mas, a partir do momento que não se lembra, cada existência é para ele como a primeira e está, assim, sempre recomeçando. Como conciliar isso com a justiça de Deus? [pergunta]
Grande pergunta, e uma das mais pertinentes de todo "O Livro dos Espíritos".
– A cada nova existência o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem do mal. Onde estaria o mérito, ao se lembrar de todo o passado? Quando o Espírito volta à sua vida primitiva (a vida espírita) , toda a sua vida passada se desenrola diante dele; vê as faltas que cometeu e que são a causa do seu sofrimento e o que poderia impedi-lo de cometê-las. Compreende que a posição que lhe foi dada foi justa e procura então uma nova existência em que poderia reparar aquela que acabou. Escolhe provas parecidas com as que passou ou as lutas que acredita serem úteis para o seu adiantamento, e pede a Espíritos Superiores para ajudá-lo nessa nova tarefa que empreende, porque sabe que o Espírito que lhe será dado por guia nessa nova existência procurará fazê-lo reparar as suas faltas, dando-lhe um a espécie de intuição das que cometeu. Essa mesma intuição é o pensamento, o desejo maldoso que frequentemente vos aparece e ao qual resistis instintivamente, atribuindo a maior parte das vezes essa resistência aos princípios recebidos de vossos pais, enquanto é a voz da consciência que vos fala. Essa voz é a lembrança do passado, que vos adverte para não recair nas faltas que já cometestes. O Espírito, ao entrar nessa nova existência, se suporta essas provas com coragem e resiste, eleva-se e sobe na hierarquia dos Espíritos, quando volta para o meio deles.
Se não temos, durante a vida corporal, uma lembrança precisa do que fomos e do que fizemos de bem ou mal em existências anteriores, temos a intuição disso, e nossas tendências instintivas são uma lembrança do nosso passado, às quais nossa consciência, que é o desejo de não mais cometer as mesmas faltas, nos adverte para resistir. [Allan Kardec]
Não há no esquecimento das existências passadas, principalmente nas que foram dolorosas, qualquer coisa de providencial, em que se revela a justiça divina? (…)
Concluamos: tudo o que Deus fez é bem feito e não nos cabe criticar as suas obras e dizer como deveria reger o universo.
A lembrança de nossas individualidades anteriores teria inconvenientes muito graves; poderia, em certos casos, nos humilhar muito; noutros, exaltar o nosso orgulho e, por isso mesmo, dificultar nosso livre-arbítrio. Deus deu, para nos melhorarmos, exactamente o que é necessário e basta: a voz da consciência e nossas tendências instintivas, privando-nos do que poderia nos prejudicar. Acrescentemos ainda que, se tivéssemos lembrança de nossos actos pessoais anteriores, teríamos igualmente a dos outros, e esse conhecimento poderia ter os mais desastrosos efeitos sobre as relações sociais. [Allan Kardec]
Novamente Kardec tem toda a razão. Teria efeitos desastrosos sobre as relações sociais. Se descobrir segredinhos da treta via Facebook já tem as consequências que tem! E não, não estou a ironizar. Imaginem agora descobrirem segredos e falsidades de séculos, de milénios, que determinada pessoa escondeu de vocês ou com os quais vos enganou. Imaginem que são próximos dessa pessoa porque têm uma ligação kármica a resolver. Nada seria resolvido. Vejo a lógica.
Pelo estudo de suas tendências instintivas, que são uma recordação do passado, o homem pode conhecer os erros que cometeu? [pergunta]
– Sem dúvida, até certo ponto; mas é preciso se dar conta da melhoria que pôde se operar no espírito e as resoluções que ele tomou na vida espiritual. A existência actual pode ser bem melhor que a precedente.
Os acontecimentos da vida corporal são, ao mesmo tempo, uma expiação pelas faltas passadas e provas que visam ao futuro. Pode-se dizer que da natureza dessas situações se possa deduzir o género da existência anterior? [pergunta]
– Muito frequentemente, uma vez que cada um é punido pelos erros que cometeu; entretanto, não deve ser isso uma regra absoluta. As tendências instintivas são a melhor indicação, visto que as provas pelas quais o Espírito passa se referem tanto ao futuro quanto ao passado.
Certo. Nem todas as provas são uma expiação do passado. No entanto, ao ser humano, que é inteligente, não custa muito somar dois mais dois e perceber que género de faltas cometeu em vidas passadas e que virtudes delas trouxe. As virtudes são instintivas. As faltas são pagas na mesma moeda. Logo, se sou traída, é porque traí. Se sou roubada, é porque roubei. Se sou explorada, é porque explorei. Uma vez ouvi, num filme qualquer: "Quando as coisas se começarem a repetir na tua vida começa a prestar-lhes atenção". E quando as coisas se repetem, é para prestar atenção. Como eu dizia, basta somar dois mais dois.
Houve algo que li n'"O Livro dos Espíritos" que fez para mim especial sentido: é possível que alguns Espíritos queiram redimir-se de demasiadas coisas numa única existência, para "passar de nível" mais depressa, e assim escolham provas extremamente duras que não conseguem suportar... e falham. Diz Kardec, noutra passagem, que se um homem não souber nadar mas escolher como prova atravessar a nado um oceano, certamente se afoga, mas Deus permite. (Haveria Espíritos a desaconselhá-lo de tal loucura, mas se o Espírito for teimoso...)