Actualmente, eu não gosto de poesia. Aconteceu entre mim e a poesia uma espécie de divórcio por diferenças irreconciliáveis e cada uma seguiu o seu caminho.
Nem sempre foi assim. Na adolescência era uma ávida leitora de poesia. Infelizmente, só da poesia portuguesa, por falta de conhecimento suficientemente profundo de outras línguas para as entender ao nível poético. Não falo de letras de canções, embora algumas mereçam de facto o estatuto de poemas, falo de grande poesia que só se consegue começar a compreender quando se adquire algo mais do que o domínio da língua, mas também as suas insinuações, o que passa também pela compreensão da cultura onde essa poesia se origina. O que é difícil, muito difícil, sem lhe dedicar o estudo de uma vida.
Dos portugueses, na verdade, só posso dizer que gosto verdadeiramente de Florbela Espanca. O que, agora que reflicto no assunto, não é assim tão estranho. Afinal, acontece o mesmo na literatura e na música, estranho seria que não acontecesse na poesia também.
Mas não foi essa cisão cultural que pôs fim à minha relação com a poesia. Foi algo de mais profundo, algo da alma. O que me afasta da poesia é a sua própria definição: é subjectiva. A certa altura começou a irritar-me perder tempo a tentar decifrar o que raio o poeta queria dizer com aquilo, e chegar a uma conclusão, e depois saber que o poeta queria dizer outra coisa, e que todos os leitores viam uma coisa diferente. Essa subjectividade é algo que me irrita a alma como uma forma de duplicidade, de falsidade, de desonestidade. Se queres dizer algo, porque não dizes algo? A partir do momento em que esta desconfiança entrou dentro de mim comecei a torcer o nariz à poesia e a preferir muito mais a prosa, que até pode conter elementos poéticos, mas não tão poéticos que alguma vez o leitor fique na dúvida sobre o que leu. O que tem tudo a ver com a minha personalidade.
A algumas pessoas a quem disse que já não gostava de poesia mas que não podia explicar sem elaborar sobre o assunto, aqui fica a explicação.
Não é que eu não saiba reconhecer o que está bem escrito. Nada disso. Nem que não haja esta ou aquela excepção a contrariar a regra e de vez em quando eu encontre um poema de que realmente gosto. Já aqui publiquei alguns.
É mesmo uma questão de gosto. Como na música. (Tudo é como na música.) Posso apreciar a música clássica e erudita, posso reconhecer-lhe o mérito, posso até gostar do Requiem de Mozart, mas não é por isso que ouço Mozart, e de facto não ouço.
Depois de descoberta esta incompatibilidade desisti da poesia e enveredei por aquilo de que, no fundo, sempre gostei, desde pequena. As histórias. De preferência, as que não tinham rima e permitiam contar-se de maneiras diferentes.
Um dia, o Capuchinho Vermelho andava no bosque... Mas também pode ser,
Era uma vez um lobo mau... Ou,
Naquela aldeia vivia uma avó, que tinha uma menina, que tinha um lobo... A melhor poesia, para mim, está na prosa. Serve a prosa, encanta a prosa.
Mas nem sempre foi assim. Na adolescência, sofri da febre da poesia, que é uma coisa que dá depois da puberdade e passa depressa.
(É como o gótico que dá nos miúdos.) A não ser aos poetas, a quem não passa. A mim, que não sou poeta, passou. Antes disso, entre os quinze e os vinte anos, escrevi uma quantidade considerável de poemas. Li algures que os estudantes de Coimbra, nos dias em que ser um estudante de Coimbra significava alguma coisa, sentiam-se intelectualmente obrigados a escrever um livro de poesia. Não sei se é isso, se não será a febre adolescente de que falava antes, mas a verdade é que decidi escolher os que achava melhores e fazer o
meu livro de poesia. Chamei-lhe "Máquina Herética: poesia e prosa poética", e na altura achei aquilo muito engraçado.
Há poucos dias, a propósito de umas arrumações cá em casa, descobri que ainda tinha a versão impressa do livro. Pensava que tinha passado os poemas para o computador e que a tinha deitado fora. Foi curioso encontrá-la. Antes de mais, porque é uma relíquia de outros tempos, os tempos antes do computador. Só por isso vos vou mostrar uma página desta relíquia. Naquela altura batia-se à máquina de escrever, corrigiam-se as imperfeições com tinta branca, tiravam-se fotocópias para disfarçar essas imperfeições, encadernava-se com argolas, e estava feito o
livro. Era assim, em toda a glória da impressão digital de cada uma das máquinas de escrever, com rasurados e manchas e erros de ortografia e tudo:
É sempre curioso mostrar estas coisas. A quem já não nasceu no tempo de as ver fazer, imagino que isto vos pareça tão antigo como os pergaminhos dos monges medievais. Aos mais velhos, aos que as fizeram também, sei que estas coisas provocam um sorriso e nostalgia e lembranças. Foi há tanto tempo, não foi? Um tempo em que não se imaginava que um dia se pudesse mostrar estas coisas ao mundo inteiro se nos apetecesse.
São por isso ainda mais relíquias, objectos históricos de um passado que acabou.
Depois, peguei naquilo, como se fosse o trabalho de outra pessoa, levei-o para metro e pus-me a ler. Devo dizer que passei umas boas horas completamente absorvida. Já não me lembrava. Na maioria dos casos, aconteceu-me o que me acontece com a poesia dos outros: se não fosse eu própria que a tivesse escrito não fazia a mínima ideia do que aquilo significava. Não era para se perceber. Continua a não ser para se perceber. Para se perceber, escrevo de outra maneira. Assim.
Mas fiquei admirada por encontrar algumas coisas dignas de mostrar. Não as considero ambiciosas, mas provocam-me qualquer coisa. Escolhi novamente, e é o que vou partilhar aqui a partir de amanhã. Uma selecção tirada da compilação "Máquina Herética: poesia e prosa poética". É possível que não resista sem acrescentar comentários. Não sei. A poesia é muito imprevisível.