Queria pôr-vos a pensar na inveja quando fiz a pergunta ali em baixo. Pessoalmente, não é mal de que eu sofra embora tenha muitas vezes sido vítima de invejosos.
Penso que havia uma coisa boa na religiosidade antiga que era o facto de as pessoas se confessarem. O padre foi substituído, nas classes privilegiadas, pelo analista. Passou a ser fino.
Com a perda da religiosidade, que subsiste com a noção ignorante de que a psicanálise é só para os doidos, a maioria da população perdeu o hábito de olhar ao espelho. Perderam-se os valores de virtude e defeito. Perderam-se mais valores, mas estes são dos mais importantes.
Depois desta pequena dissertação introdutória, golpe de teatro!, não vou falar de inveja. Direi apenas que muitas mentes brilhantes neste país apontam a inveja como o "mal nacional". Estão enganados. Estão todos enganados! Andam lá perto mas não conseguiram apanhar a seiva da coisa. E a seiva, como a própria palavra indica, é algo de mais espesso e mais profundo, mais escondido, do que a inveja (que é apenas a casca superficial). A seiva às vezes fica nas mãos quando se toca na casca mas têm-se dado mais importância à casca do que à seiva que a alimenta.
Os portugueses não são mais nem menos invejosos do que os nacionais de outros países. A nível individual, uns são mais invejosos do que os outros, é certo, mas o mesmo acontece em todo o lado. Não é por aí.
O grande mal nacional, a pegar nos sete pecados mortais, é a preguiça. Não, não é a preguiça óbvia que é a vontade de não fazer nada. É pior. Trata-se de um imobilismo, uma estagnação, de origens culturais, que é imposta desde a infância.
Desde a escola primária é-nos dito para não irmos depressa demais. É-nos dito para "acompanhar o ritmo dos outros". Todos têm que ir ao mesmo ritmo, como um rebanho. Ninguém se pode salientar pelo mérito. Atrasar-se, pode (e deve), porque atrasa também os outros. E, ao atrasar os outros, faz com que andem TODOS mais devagar. O que é bom, porque é menos cansativo. O que convida a uma preguiça irresistível.
Digo-vos mesmo, durante todo o meu percurso escolar, nunca estudei 5 dias para ter 20 se me bastavam 3 dias para ter 16. E 16 já era acima da média. E já os outros olhavam de lado porque, afinal, estava a provocar um sobreaquecimento da turma e podia dar-se o caso de os professores acharem que estava a ser "muito fácil". De modo que, para não tornar as coisas mais difíceis, vamos fingir todos que somos burros e não vamos FAZER MAIS se podemos fazer menos.
Estou a fazer-me explicar?
É o tal ditado muito português "para quem é bacalhau basta". Se basta bacalhau cozido, não vale a pena inventar pratos sofisticados. Até porque dá mais trabalho.
Depois, a vida profissional. No trabalho, somos pressionados pelos outros a fazer o menos possível. Por duas razões: primeiro, se fizermos mais, o patrão duplica o trabalho; segundo, se fizermos mais, não ganhamos mais por isso.
Aliás, acredito que a expressão "coçar os tomates" não tem tradução noutra língua que não a portuguesa. É certo que os alemães, os americanos, os ingleses, também coçam os tomates. Só não os coçam no mesmo sentido que nós. Em Portugal, até as mulheres coçam os tomates. A palavra "ronha" deve ser tão intraduzível como a palavra "saudade".
É justo. Como não há reconhecimento do mérito, não há empenho. Não há incentivo.
É por isso que ouvimos aquela velha história de que "portugueses, lá fora, se esforçam e mostram do que são capazes". Dentro de portas, é o que se vê. A ponto de um imigrante ser o único que pode dizer: "Ah, que saudades de fazer ronha!"
E porquê? É cultural. E não é inveja, é preguiça.
É este um dos problemas da nossa produtividade. A falta dela. No trabalho, o que é exigido ao empregado é que esteja lá, que esteja presente, que seja assíduo. O que faz é de somenos importância. A qualidade, então, é descartável. O que importa é que produza o mínimo.
O MÍNIMO. Porque se alguém começa a produzir mais - e quem é que me vai dizer que não? - começam os colegas todos a olhar de lado. "Este parvo está a lixar-nos a vida". É-lhe dito para "abrandar". Para não se esforçar tanto. Que está a ganhar inimigos.
Vão dizer que não?
Em toda a minha vida, neste país, nunca ouvi dizer, nem na escola, nem no trabalho, nem em lado nenhum: "Vamos ser os melhores".
Ouvi, sim, dizer, "Vamos tentar melhorar" ou "Vamos tentar estar à altura" ou "Vamos ver se conseguimos fazer o mínimo para não perder clientes" ou "Vamos ver se conseguimos".
"Vamos ser os melhores"? Nem em palavras!
Harry Potter e o menino Tonecas
Identificado o mal de raiz, quis pôr-me a analisar a razão de isto ser assim. Não porque eu ache que os portugueses sejam mais preguiçosos do que os outros (veja-se o caso dos referidos imigrantes) mas porque se portam como se fossem.
Lembrei-me do único livro que li do Harry Potter (não é o meu género porque, como devem imaginar, é muito soft para o meu gosto). Peço a todos que recordem, pelo menos, o filme. Lembrem-se da competição que existe entre o menino bom, o Harry Potter, e o menino mau, o Draco Malfoy. Mas há algo em comum: ambos competem pelas notas, pelo mérito, pelo prémio. Ambos sabem trabalhar em equipa. Ambos respeitam os professores e dão valor ao conhecimento. Ambos se desunham para mostrar quem é o melhor, e para ajudar a equipa. Ambos estudam pela noite fora para levar a melhor. Ambos têm orgulho.
Agora pensem no menino Tonecas. O menino Tonecas também tem orgulho. Julga-se o maior. E as semelhanças com Harry Potter começam e terminam aqui. O menino Tonecas está na sala de aula a gozar com o professor. Não sabe nada nem quer aprender. Não é capaz de fazer magia nenhuma. Só diz gracinhas. O resto da turma, estupidamente, ri. É o elogio da estupidez. Quando a aula acaba, é como se não tivesse começado.
A aula ri-se do mérito do professor. Inveja?... Inveja de quê? Do conhecimento do professor? Pobre coitado! O professor é o alvo do gozo e nunca passará de um pobre professor de escola primária. O professor sabe demais. Quem está no poder são outros meninos Tonecas que fazem de parvo um país inteiro.
Mas isso é porque os portugueses são estúpidos?
De forma alguma. Os portugueses não são menos inteligentes do que os outros, se é que não são mais. Simplesmente perceberam que não vale a pena o esforço. Que a preguiça compensa. Que o mérito não é recompensado. Que mais vale estar quieto.
Porque é que o mérito não é recompensado? Para culpar este imobilismo nacional, há quem aponte o dedo à ditadura que paralisava quem quer que fosse que quisesse brilhar pois, quem brilhava, quem pensava, era certamente anti-regime. Tenho para mim que isto vem de mais atrás. Nunca o mérito foi recompensado. Nem Camões nem Pessoa tiveram cunhas.
Mas não é o atrás que nos interessa. O que nos interessa é o que vem aí pela frente, o futuro. E o que se vê no presente? Um facilitismo assustador que começa na escola e termina, inevitavelmente, na incompetência. A longo prazo, é todo um país que se torna incompetente. É todo um país sem valores, sem apreço pelo mérito. E temo que esse desapreço pelo mérito se tenha confundido com um desrespeito pela autoridade em geral, e pelas instituições do conhecimento, nomeadamente a escola, que rebentou no 25 de Abril e que agravou a tendência nacional para a preguiça. Ela já existia mas o facilitismo da revolução veio agravá-la. Hoje temos no poder a geração dos meninos Tonecas do 25 de Abril. E é o que se vê.
Posto isto, é por estas e outras que os ingleses têm o Harry Potter, que deslumbra e fascina pessoas de todas as idades em todo o mundo, e nós temos um menino Tonecas ranhoso que só faz rir a meia dúzia de portugueses que vêem o programa à hora de jantar por falta de alternativas.
Dá que pensar, não dá?
E agora não escrevo mais porque me dá preguiça escrever tanto e certamente que o leitor também já deve estar a pensar que ler este texto está a dar muito trabalho. Foi por isso que pus certas frases a bold, para facilitar.
Porque a palavra de ordem é: fazer o máximo para que eles leiam, no mínimo, o mínimo.
(Estou contente. Lavei a alma.)
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