Uma vez contei uma história verdadeira, e muito muito triste, da minha vida, a alguém. A resposta foi "Nem sei o que te hei-de dizer". E nunca mais falou comigo. O mais triste, ainda por cima, é que nem sequer contei tudo, nem o pior.
Tem sido esta a maioritária reacção dos outros. Fogem, desaparecem, não conseguem lidar com uma realidade que é demasiado desesperada. Às vezes penso que é algo de supersticioso, como se a infelicidade, o azar, a pobreza, fossem uma espécie de lepra que se pegasse...
Há meia dúzia de outros que querem salvar-me. Na verdade, não é a mim que querem ajudar, mas antes ajudar si próprios, fazer uma boa acção para se sentirem bem consigo mesmos... Não me adianta dizer que aquilo que eu preciso é apenas que me escutem. Apenas e só que me escutem. Mas escutar não é "salvar", e se não podem salvar, se não me podem arrastar para um qualquer médico ou padre ou curandeiro ou afins e salvar-me, então, todo o interesse na minha pessoa desaparece. Desaparecem também.
Esta é outra parte do silêncio. O meu silêncio. Já não tenho idade para ilusões e o meu desapontamento com as pessoas ultrapassou todos os limites que eu julgava concebíveis. Se não posso falar, não falo. Se não há ninguém, não há ninguém. Não adianta continuar a fingir. Não estava nas estrelas.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
domingo, 21 de agosto de 2011
O silêncio
Hoje é um daqueles dias em que não há nada a fazer excepto escrever aqui. Que grande elogio estou a fazer a esta página! É quase como dizer "não há nada a fazer senão rezar". Curioso, não é? Nunca me tinha apercebido disto.
O que é de tudo mais curioso é que quando escrevo aqui, nestes momentos, não estou a escrever para ninguém em especial. Já aqui o disse, é como aquele náufrago que deixa uma mensagem na gruta a testemunhar "eu estive aqui" embora não espere que ninguém por lá passe no futuro ou que tal tenha relevância prática no presente. Deve ser instintivo ao ser humano escrever nas paredes das grutas só porque pode.
Escrevi a minha primeira história quando tinha oito anos. Foi um trabalho da escola. Davam-nos um princípio de enredo e tínhamos que desenvolver uma história a partir daí. O trabalho era para ser apresentado no dia seguinte. Pela primeira vez na minha vida, não consegui apresentar o trabalho no prazo devido. A professora ficou muito intrigada. Eu respondi apenas "ainda não está pronto". Isto durou uma semana. Todos os dias a professora insistia e cada vez eu me irritava mais e lhe dizia "ainda não está pronto". Deve ter sido a primeira vez que senti a frustração de um verdadeiro escritor confrontado com os outros. Como é que ela não percebia que ainda não estava pronto? Era uma história, não uma conta de multiplicar. Uma história requer tempo, concentração, inspiração. Não é coisa que se escreva quando se quer!
Uma semana depois, lá lhe apresentei vinte ou trinta páginas. Acho que a mulher se passou da cabeça. Acho que acreditava mesmo, a bruta, que eu não estava a fazer o trabalho! Como é que é possível?!
Enfim, aquilo foi lido por todos os professores da escola. A história tratava de temas que uma miúda de oito anos não devia saber tratar -- e aqui só entre nós não sabia mesmo.
Do ponto de vista literário não tinha interesse nenhum. Do ponto de vista de uma proeza de infância não sei: deitei aquilo fora quando anos mais tarde encontrei o manuscrito e me apercebi de que não tinha interesse literário. Aliás, a maior parte das coisas que escrevi durante toda a minha vida já foi destruída.
Mas aquele exercício ensinou-me uma coisa extraordinária, inconcebível para mim até àquele momento! Sempre gostei de ler, mas até àquele preciso momento nunca me tinha passado pela cabeça que os livros não estavam já todos escritos. Mais ainda, que eu também podia escrever qualquer coisa de novo! Fantástica descoberta! Nefasto e terrível vício, só comparável, de facto, à descoberta do orgasmo.
Continuei as escrever umas coisinhas, mas agora percebo que eram vôos demasiado elevados para as asas da idade. Nessa altura não sabia o que me levava a escrever coisas de adultos. Agora sei, mas não digo.
Digo apenas isto. Costuma recomendar-se, aos jovens escritores, "escreve sobre coisas que conheces". E caramba, eu estava a escrever sobre coisas que conhecia, eles é que não sabiam o que eu sabia e a minha inexperiência era de forma, não de conteúdo. O conteúdo já estava todo lá.
Mas ninguém percebia o que eu estava a dizer, por isso tentei melhorar. Comecei a fazer versões de versões de versões. Chama-se a isso "prática". Mas continuei. Na verdade, não tive outro remédio. A inspiração é uma forma de possessão.
Por volta dos vinte e poucos anos já conseguia escrever coisas que transmitiam coisas. Escrever coisas que transmitem coisas é difícil. Foi por volta dessa altura que as pessoas que liam começaram a sentir as minhas palavras. Foi por volta dessa altura que comecei a receber como reacção, em vez da crítica, o silêncio. Um silêncio sepulcral. Um silêncio tão sepulcral que pensei exactamente o contrário: que as minhas palavras não tinham impacto nenhum.
Agora posso dizê-lo, que já ninguém se lembra disto nem de mim. Escrevi num jornal, e na entrevista para esse emprego de jornalista incorri na ingenuidade de dizer que era escritora (no simples intuito de explicar que tinha o costume de escrever). A cara da pessoa que me entrevistava foi inesquecível. "Escritora? Tens alguma coisa publicada?" Confesso que foi uma pergunta que me deixou tão embasbacada como as insistências da professora pelo TPC que não aparecia. Perguntei-me, e o que eram os escritores antes de serem publicados? Ou seja, o que era Camões antes de ser publicado? Não era já um poeta? Quando é que Camões, exactamente, se tornou um poeta? Quando foi publicado? No momento em que começou a escrever? Antes? Depois? E se nunca tivesse sido publicado, nunca seria um poeta? A pessoa que fazia a pergunta não se apercebia da barbaridade que dizia, nem nunca eu a contradisse, até porque entretanto consegui o emprego, eheheh.
Mas deixei de dizer que era escritora. Afinal, não tinha nada publicado. Pergunta existencial: e agora, que tenho anos e anos de blog publicado, já sou escritora, ou pelo menos blogueira?
Isto leva-me a extrapolar para a conversa que tive com um amigo que me falou em publicar partes deste blog em livro. As partes sumarentas em que falo da minha vida, claro está, que isto aqui é só coscuvilhice. Confesso que também fiquei perplexa. Não está já publicado? Não está aqui? Palavra de honra, há coisas que não percebo. Um blog é um blog, isto é um blog, as palavras deste blog esgotam-se aqui, rebentam como bolhas de sabão e desaparecem. Exactamente como bolhinhas de sabão à chuva.
Mas onde é que eu ia? Sim, na minha experiência jornalística. Aprendi, com esta, que não sabia nada. Que a minha escrita era feia, monótona, desinteressante. Excepto quando me deixavam escrever crónicas. Cheguei a receber cartas de admiradores. Acho que isto causou uma certa inveja por lá mas não entremos por aí... A inveja é uma coisa tão feia.
Ainda escrevi mais algumas coisas, e mostrei, mas continuava a receber como reacção o tal silêncio, e fiz aquilo que um aspirante a escritor não deve fazer nunca: parei de escrever de todo. Durante uns quinze anos, não escrevi absolutamente nada. Isto equivale a um bailarino que deixa de dançar ou a um ginasta que deixa de praticar. Atrofia muscular. Atrofia de estilo. Anos e anos perdidos a achar que os leitores não sentiam as minhas palavras. Anos e anos a pensar que o silêncio significava a minha inépcia.
Foi um choque começar este blog e perceber que tinha leitores. Sempre pensei que escrevia para o ar. Literalmente. Foi um choque ouvir elogios de que escrevia bem. Estava convencida do contrário. Foi um choque compreender que as minhas palavras tinham tanto impacto que até tinham impacto a mais: causavam demasiada polémica. (Tenho-me controlado bastante desde esses tempos! Há que saber poupar energia.)
Se não fosse por esta página nunca teria sabido nada disto. Se não fosse por esta página, nunca teria aprendido o Mal e o Bem que me foi desfilando perante os olhos assombrados.
O que eu acho mais enigmático, de certa forma até fatídico (no sentido em que é um fado, um destino) é que as descobertas sempre me tenham sido proporcionadas por completos estranhos. Longínquos, distantes estranhos. Se Dante diz que existem nove círculos de inferno eu tendo a constatar que existem vários círculos de solidão, como os anéis de Saturno. O silêncio é um deles. Mas apenas mais um. Nem sequer o pior.
Mas continua a ser curioso que as melhores coisas que já fiz foram feitas quando as fazia para o ar. O meu erro é insistir na companhia. Agora percebo. Se calhar há coisas que estão destinadas a nunca ficar prontas.
Coisas como este post, que está longe de estar pronto e mesmo assim já foi tão longe, longe demais.
O que é de tudo mais curioso é que quando escrevo aqui, nestes momentos, não estou a escrever para ninguém em especial. Já aqui o disse, é como aquele náufrago que deixa uma mensagem na gruta a testemunhar "eu estive aqui" embora não espere que ninguém por lá passe no futuro ou que tal tenha relevância prática no presente. Deve ser instintivo ao ser humano escrever nas paredes das grutas só porque pode.
Escrevi a minha primeira história quando tinha oito anos. Foi um trabalho da escola. Davam-nos um princípio de enredo e tínhamos que desenvolver uma história a partir daí. O trabalho era para ser apresentado no dia seguinte. Pela primeira vez na minha vida, não consegui apresentar o trabalho no prazo devido. A professora ficou muito intrigada. Eu respondi apenas "ainda não está pronto". Isto durou uma semana. Todos os dias a professora insistia e cada vez eu me irritava mais e lhe dizia "ainda não está pronto". Deve ter sido a primeira vez que senti a frustração de um verdadeiro escritor confrontado com os outros. Como é que ela não percebia que ainda não estava pronto? Era uma história, não uma conta de multiplicar. Uma história requer tempo, concentração, inspiração. Não é coisa que se escreva quando se quer!
Uma semana depois, lá lhe apresentei vinte ou trinta páginas. Acho que a mulher se passou da cabeça. Acho que acreditava mesmo, a bruta, que eu não estava a fazer o trabalho! Como é que é possível?!
Enfim, aquilo foi lido por todos os professores da escola. A história tratava de temas que uma miúda de oito anos não devia saber tratar -- e aqui só entre nós não sabia mesmo.
Do ponto de vista literário não tinha interesse nenhum. Do ponto de vista de uma proeza de infância não sei: deitei aquilo fora quando anos mais tarde encontrei o manuscrito e me apercebi de que não tinha interesse literário. Aliás, a maior parte das coisas que escrevi durante toda a minha vida já foi destruída.
Mas aquele exercício ensinou-me uma coisa extraordinária, inconcebível para mim até àquele momento! Sempre gostei de ler, mas até àquele preciso momento nunca me tinha passado pela cabeça que os livros não estavam já todos escritos. Mais ainda, que eu também podia escrever qualquer coisa de novo! Fantástica descoberta! Nefasto e terrível vício, só comparável, de facto, à descoberta do orgasmo.
Continuei as escrever umas coisinhas, mas agora percebo que eram vôos demasiado elevados para as asas da idade. Nessa altura não sabia o que me levava a escrever coisas de adultos. Agora sei, mas não digo.
Digo apenas isto. Costuma recomendar-se, aos jovens escritores, "escreve sobre coisas que conheces". E caramba, eu estava a escrever sobre coisas que conhecia, eles é que não sabiam o que eu sabia e a minha inexperiência era de forma, não de conteúdo. O conteúdo já estava todo lá.
Mas ninguém percebia o que eu estava a dizer, por isso tentei melhorar. Comecei a fazer versões de versões de versões. Chama-se a isso "prática". Mas continuei. Na verdade, não tive outro remédio. A inspiração é uma forma de possessão.
Por volta dos vinte e poucos anos já conseguia escrever coisas que transmitiam coisas. Escrever coisas que transmitem coisas é difícil. Foi por volta dessa altura que as pessoas que liam começaram a sentir as minhas palavras. Foi por volta dessa altura que comecei a receber como reacção, em vez da crítica, o silêncio. Um silêncio sepulcral. Um silêncio tão sepulcral que pensei exactamente o contrário: que as minhas palavras não tinham impacto nenhum.
Agora posso dizê-lo, que já ninguém se lembra disto nem de mim. Escrevi num jornal, e na entrevista para esse emprego de jornalista incorri na ingenuidade de dizer que era escritora (no simples intuito de explicar que tinha o costume de escrever). A cara da pessoa que me entrevistava foi inesquecível. "Escritora? Tens alguma coisa publicada?" Confesso que foi uma pergunta que me deixou tão embasbacada como as insistências da professora pelo TPC que não aparecia. Perguntei-me, e o que eram os escritores antes de serem publicados? Ou seja, o que era Camões antes de ser publicado? Não era já um poeta? Quando é que Camões, exactamente, se tornou um poeta? Quando foi publicado? No momento em que começou a escrever? Antes? Depois? E se nunca tivesse sido publicado, nunca seria um poeta? A pessoa que fazia a pergunta não se apercebia da barbaridade que dizia, nem nunca eu a contradisse, até porque entretanto consegui o emprego, eheheh.
Mas deixei de dizer que era escritora. Afinal, não tinha nada publicado. Pergunta existencial: e agora, que tenho anos e anos de blog publicado, já sou escritora, ou pelo menos blogueira?
Isto leva-me a extrapolar para a conversa que tive com um amigo que me falou em publicar partes deste blog em livro. As partes sumarentas em que falo da minha vida, claro está, que isto aqui é só coscuvilhice. Confesso que também fiquei perplexa. Não está já publicado? Não está aqui? Palavra de honra, há coisas que não percebo. Um blog é um blog, isto é um blog, as palavras deste blog esgotam-se aqui, rebentam como bolhas de sabão e desaparecem. Exactamente como bolhinhas de sabão à chuva.
Mas onde é que eu ia? Sim, na minha experiência jornalística. Aprendi, com esta, que não sabia nada. Que a minha escrita era feia, monótona, desinteressante. Excepto quando me deixavam escrever crónicas. Cheguei a receber cartas de admiradores. Acho que isto causou uma certa inveja por lá mas não entremos por aí... A inveja é uma coisa tão feia.
Ainda escrevi mais algumas coisas, e mostrei, mas continuava a receber como reacção o tal silêncio, e fiz aquilo que um aspirante a escritor não deve fazer nunca: parei de escrever de todo. Durante uns quinze anos, não escrevi absolutamente nada. Isto equivale a um bailarino que deixa de dançar ou a um ginasta que deixa de praticar. Atrofia muscular. Atrofia de estilo. Anos e anos perdidos a achar que os leitores não sentiam as minhas palavras. Anos e anos a pensar que o silêncio significava a minha inépcia.
Foi um choque começar este blog e perceber que tinha leitores. Sempre pensei que escrevia para o ar. Literalmente. Foi um choque ouvir elogios de que escrevia bem. Estava convencida do contrário. Foi um choque compreender que as minhas palavras tinham tanto impacto que até tinham impacto a mais: causavam demasiada polémica. (Tenho-me controlado bastante desde esses tempos! Há que saber poupar energia.)
Se não fosse por esta página nunca teria sabido nada disto. Se não fosse por esta página, nunca teria aprendido o Mal e o Bem que me foi desfilando perante os olhos assombrados.
O que eu acho mais enigmático, de certa forma até fatídico (no sentido em que é um fado, um destino) é que as descobertas sempre me tenham sido proporcionadas por completos estranhos. Longínquos, distantes estranhos. Se Dante diz que existem nove círculos de inferno eu tendo a constatar que existem vários círculos de solidão, como os anéis de Saturno. O silêncio é um deles. Mas apenas mais um. Nem sequer o pior.
Mas continua a ser curioso que as melhores coisas que já fiz foram feitas quando as fazia para o ar. O meu erro é insistir na companhia. Agora percebo. Se calhar há coisas que estão destinadas a nunca ficar prontas.
Coisas como este post, que está longe de estar pronto e mesmo assim já foi tão longe, longe demais.
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