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domingo, 27 de julho de 2025

Yellowjackets (2021 - ?) [primeira e segunda temporada]


− Porque é que o Travis está a gritar?
− Porque vamos comer o irmão dele.


Uma equipa de raparigas, campeãs de futebol, sobrevive a um acidente de avião que se despenha numa floresta remota. Durante quase dois anos, têm de sobreviver sozinhas na natureza.
Não costumo dizer isto muitas vezes, mas esta série não é mesmo para todos. Logo nos primeiros minutos percebemos que vai haver canibalismo. O interessante aqui é como as adolescentes chegam a esse ponto.
As raparigas passam 19 meses numa região montanhosa, incluindo dois invernos muito frios, em que têm de aprender a caçar e a aproveitar qualquer alimento que consigam encontrar. Mas este não é um grupo de raparigas vulgares. Como se não bastasse a insegurança e o drama dos 17 anos, há duas sociopatas entre elas. Para começar, as sobreviventes nunca estariam desaparecidas se uma das sociopatas não tivesse sabotado a caixa negra do avião, que tinha um localizador a funcionar. Porque é que ela fez isso? Porque no mundo normal não era reconhecida, e ali, na floresta, tem competências que a tornam valiosa aos olhos das outras.
A questão da fome é muito premente e presente. Mas as raparigas nunca decidem recorrer aos extremos de forma ponderada, racional e consciente. Pelo contrário, incapazes de lidar directamente com as implicações do que estão a fazer, acabam por criar um culto e deixar a escolha da vítima sorteada à "Entidade da Floresta". A entidade da floresta não existe, e algumas nunca acreditam nela, mas o culto é única maneira de sobreviver. Estas raparigas são combativas, campeãs, não lhes passa pela cabeça outra opção que não a sobrevivência. O único adulto que sobrevive ao acidente, um treinador de vinte e poucos anos, nunca se junta a elas. Pelo contrário, começa logo a perceber a dinâmica perigosa que se está a criar ali e a temê-las (e com razão). Até os lobos aprendem a ter medo delas.
"Yellowjackets" tem sido comparado a "O Senhor das Moscas" ("Lord of the Flies") na versão adolescente e feminina, e muito correctamente. Rapidamente se gera um clima de terror no acampamento, a selvajaria da lei da mais forte, seja por ser útil ou por ser a que está em contacto com a "Entidade". Ninguém quer abdicar do que está a fazer, mas ninguém quer ser a próxima.
A série não é só sobre as adolescentes na floresta. Vinte e cinco anos depois, seguimos as vidas de quatro sobreviventes que foram resgatadas e regressaram à civilização. Existe um pacto de silêncio entre elas, mas subitamente alguém começa a chantageá-las. Tenho lido críticas a dizer que esta parte da série é a mais interessante, mas não posso concordar. Mulheres desequilibradas e perigosas é sempre um tema fascinante (e já muito explorado), mas adolescentes desequilibradas e perigosas (e canibais) não é uma coisa que se veja todos os dias.
Aproveito para falar das sobreviventes, na versão adulta, que regressaram à civilização.

Taissa
Taissa é a minha personagem preferida. Só não percebo porque é que não era ela a capitã da equipa de futebol, porque Taissa é uma líder nata. (Por acaso é explicado porque é que a capitã era outra, mas não me convence.) Foi uma líder na floresta e é candidata a senadora na actualidade. Isto não é coisa pouca para uma mulher negra, casada com outra mulher negra, nos Estados Unidos. Taissa sempre foi a mais racional e madura do grupo, a que não fechava os olhos à realidade do que se estava a passar, com a perfeita noção de que era uma escolha pela sobrevivência que tinha de ser feita. Talvez por isso, por encarar a realidade de frente, a realidade a tenha sobrepujado. Taissa começou a ter episódios psicóticos e dissociativos em que a "outra Taissa" toma as rédeas. A chantagem traz a "outra Taissa" de volta, o que não é bom para uma candidata a senadora.

Shauna
Shauna é uma sociopata funcional do piorio, daquelas que não o parecem, sonsa e manipuladora. Na floresta, foi ela quem se encarregou de cortar a carne. Na actualidade, é uma dona-de-casa chata, e aborrecida, a precisar de ter um affair para se sentir viva.
As personagens são interpretadas por actrizes diferentes quando adolescentes e adultas, e devo dizer que algumas não me convenceram. Isto não é culpa das actrizes, que são excelentes, e adoro vê-las contracenar umas com as outras na versão adulta e adolescente, mas esta não é a mesma Shauna. Na adolescência, Shauna era brutal e tirânica, uma assassina capaz de matar pessoas só porque não gostava delas, mas na versão adulta finge-se sonsa e inofensiva? É que são tipos de personalidade antagónicos. Não estou mesmo a ver a evolução de uma coisa para a outra.
Se alguma vez conhecerem uma Shauna, fujam.

Misty
Misty é uma sociopata menos funcional, daquelas de quem o próprio Dexter tinha medo (e com quem acabou por casar). Interpretada por Christina Ricci (a Wednesday de "A Família Addams") na versão adulta, Misty é um terror na floresta e é um terror na civilização. Não quero contar o que ela faz, mas li uma sondagem em que as pessoas disseram que Misty era a sua personagem preferida. Quero acreditar que se estão a referir à actriz Christina Ricci, que realmente é extraordinária aqui.
Se alguma vez conhecerem uma Misty, fujam, se forem a tempo.

Natalie

Natalie é outra das personagens que não batem certo na versão adolescente e adulta. A versão adulta, uma ex-toxicodependente, é interpretada por Juliette Lewis. Mais uma vez, não me parece que seja culpa da actriz. Parece-me que a personagem estava sincronizada no primeiro episódio, mas a partir daí as personalidades divergiram e já não são a mesma pessoa. É curioso que as críticas que leio têm dito o contrário, não percebo porquê. Juliette Lewis interpretou Natalie como uma mulher destravada, histriónica, que não pensa nas consequências, que parece que está sempre bêbeda mesmo quando está sóbria, que parece, em suma, uma personagem de "Pulp Fiction", quando a versão Natalie adolescente é uma das pessoas mais sensatas e responsáveis do grupo. Pode-se argumentar que as drogas a transformaram, mas, como no caso de Shauna, não estou mesmo a ver. A Natalie adolescente depois de adulta, como drogada, já teria organizado um negócio em que era ela a traficante. A Natalie adulta é menos adulta do que a Natalie adolescente.

O monstro entre elas
Para quem tiver estômago para tal, "Yellowjackets" é uma série a não perder. O trocadilho não é inocente, há cenas muito perturbadoras com carne, sangue e ossos, e pior. Só há duas maneiras de ver esta série: com repulsa, ou com um desejo súbito de comer carne. Não preciso de saber, não me contem.
O tempo em que o terror não era levado a sério já passou. "Yellowjackets" tem um elenco de luxo. Apesar do tema, tanto a parte da floresta como a parte da actualidade são acima de tudo abordadas como drama. Para mim, a parte da actualidade funcionou como um alívio momentâneo do que se passava na floresta, com influências flagrantes de "Breaking Bad", "Better Call Saul" (com duas homenagens descaradas) e até de "Twin Peaks", mas por esta altura é mais correcto perguntar qual é a série de qualidade que não tenha sido influenciada por estas. Não consegui achar graça às tentativas de humor. Se fosse só sobre mulheres malucas e perigosas, sim, tinha achado graça, mas a tensão de saber o que ia ver no regresso à floresta (e que efectivamente vi) tirou-me a vontade de rir. Adorei a banda sonora dos anos 90, apesar de não ser o meu tipo de música preferido. Desde Smashing Pumpkins a Massive Attack a Nirvana, está lá tudo. Bom para a nostalgia.
Por último, "Yellowjackets" não é só uma série de terror, é também uma análise, de uma perspectiva forçosamente feminina, de uma história de sobrevivência de adolescentes ainda em maturação, ainda a explorarem a sua identidade e sexualidade, ainda não plenamente conscientes das consequências dos seus actos, não apenas para o mundo exterior, mas, sobretudo, as consequências do trauma com que teriam de viver o resto da vida. Estas raparigas não são monstros, mas há monstros entre elas, e há um monstro dentro de cada uma delas.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: drama, terror, canibais, O Senhor das Moscas/Lord of the Flies, Better Call Saul

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